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segunda-feira, 29 de outubro de 2012

DOCE ESCURIDÃO - parte 3




A BRUXA


                Um cheiro doce invadia a narinas de Kevin, e seus olhos estavam pesados e cheios de areia. Ele olhou em volta e percebeu que estava num suntuoso quarto, deitado numa cama de dossel com cortinas azuis. Tentou levantar-se, mas uma fisgada na nuca o forçou a parar. Olhou mais uma vez em volta, procurando pela irmã, mas não encontrou sinal dela no espaçoso cômodo. Um ronco vindo de sua barriga lembrou-lhe que ele não comia havia... há quanto tempo estou deitado aqui? Ele mais uma vez tentou levantar, resistindo com todas as forças às dores que sentia. Caminhou até uma mesinha próxima a cama, onde encontrou pão, queijo, figos e uma jarra de leite. Kevin comeu tudo com tanta pressa que quase colocou tudo para fora, mas, depois de vencer as ânsias de vômito, sentiu-se melhor. As dores no corpo já começavam a diminuir, e o estômago não lhe soava tão feroz.
Uma grande janela em forma de arco subia do chão ao teto, permitindo a entrada dos quentes e aconchegantes raios do sol. Lá fora um vasto jardim estendia-se em todas as direções, com flores de todos os tipos e formatos, e pontilhado aqui e ali por fontes ou árvores frutíferas. Imagens da floresta assombrada voltaram subitamente a sua cabeça, fazendo-o sentir qualquer coisa gelada subir pela espinha. Um temor avassalador tomou seus pensamentos, fazendo-o questionar-se onde estava a irmã e como havia chegado ali. Ele caminhou rapidamente para a porta, abrindo-a de supetão e despontando num largo corredor repleto de tapeçarias. Kevin passou por inúmeras portas, andando cada vez mais rápido e chamando pelo nome da irmã, mas a única resposta era o eco dos seus passos e sussurros distantes que diziam “Sophie, Soph, So...”. Quando ele estava começando a achar que aquele corredor não tinha mais fim, deparou-se com uma escada em caracol que descia para sabe-se lá onde.
                O garoto desceu com passos cautelosos, apurando os ouvidos, mas não se escutava nada. Até os ecos haviam lhe abandonado.  A escada dava num vasto salão que parecia ser inteiramente feito totalmente de ônix e ouro. Kevin ficou totalmente boquiaberto com aquela visão, pois nunca havia visto nada parecido com aquilo. Ele já tinha esquecido totalmente o que estava fazendo, quando o som de risos chegou aos seus ouvidos. O garoto correu pelo salão, cada passo soando como um trovão. Ali também havia inúmeras portas, mas havia uma entreaberta, e ele esgueirou-se por ela. Kevin encontrou a irmã sentada num grande sofá, numa vasta sala arejada, conversando com uma mulher vestida dos pés à cabeça de rosa e púrpura, com cabelos roxos que se amontoavam num rabo de cavalo no topo da sua cabeça, descendo até a cintura. No momento em que Sophie avistou o irmão, saltou sobre ele e abraçou-o forte. As dores ainda incomodavam Kevin, mas ele retribuiu o abraço com todo o calor possível.
                — Pensei que você nunca mais iria acordar — ela disse, soltando o irmão e olhando-o com os olhos cheios de lágrimas.
                — Por quanto tempo eu dormi?
                — Quatro dias — a voz da garota falhou.
                — Não fique assim, já estou melhor agora. Que lugar é esse? — ele perguntou com um sussurro, olhando de relance para a mulher de cabelos roxos, que o olhava com um sorriso e levantava-se do sofá.
                — Este é o palácio de Lady Liana. Foi ela que nos salvou na floresta. Se não fosse por ela...
                — Como a senhora conseguiu espantar as árvores? — Kevin perguntou abruptamente para a mulher que estava em pé ao lado da irmã.
                — Não foram as árvores que atacaram vocês, e sim as aranhas-cantantes. O veneno delas é muito poderoso, e é capaz de causar alucinações.
                — Aranhas? Não foram aranhas que nos atacaram, foram árvores. Eu senti as raízes me prendendo...
                — Tudo não passou de uma alucinação.
                Kevin olhou para a irmã, esperando que ela contasse para a mulher o que havia acontecido, mas Sophie parecia acreditar na história da estranha. Lady Liana percebeu a incredulidade do garoto, e continuou:
                — Encontrei sua irmã gritando e esperneando, e você quase morto. As aranhas tem medo do fogo, por isso fugiram de mim. Você levou muitas picadas, e pensei que não fosse sobreviver, mas, ao que parece, você é um rapaz forte.
                — Picadas? Não me... — foi quando Kevin olhou para o próprio braço e encontrou uma infinidade de pontinhos vermelhos espalhados aos pares sobre ele. O garoto ergueu olhos esbugalhados para a mulher, que retribuiu com um sorriso fraternal. — Obrigado por me salvar Lady Liana... a mim e a minha irmã — agradeceu  o garoto, acanhado.
                — O que importa é que você está bem. Os dois estão bem — disse ela por fim, colocando um braço em volta de uma Sophie alegre e sorridente.
                — Não confio nesta mulher — disse Kevin à irmã quando os dois estavam passeando pelos vastos jardins.
                — Você deveria estar grato. Foi ela que salvou nossas vidas — a garota rebateu, fazendo cara de brava.
                — Eu estou grato, mas não confio nela — ele parou para olhar a estátua de um fauno. Seus olhos eram duros e penetrantes, e Kevin teve a impressão de que a criatura o encarava. Desviando rapidamente o olhar, ele continuou sua caminhada. — Deveríamos ir embora.
                — Você está louco?! — dessa vez foi Sophie que parou de caminhar. — Nós temos tudo o que precisamos aqui, e Lady Liana disse que poderíamos ficar o tempo que quiséssemos.
                — Não podemos ficar aqui Sophie. Precisamos encontrar nossa mãe, ou pelo menos descobrir o que aconteceu com ela.
                A garota olhou para o chão, e assim ficou durante um longo tempo, então falou, com uma voz que se perdia no vento:
                — Você tem razão. Durante o jantar falarei com a Lady, e direi que iremos embora amanhã.
                Mas Sophie nem chegou a jantar. Assim que o sol se pôs, uma súbita febre atacou-a, deixando a garota acamada. Quando Kevin recebeu a notícia, correu para o quarto da irmã, e entrou gritando “O que ela fez com você?!”, mas ela não parecia estar escutando. Sua pele estava pálida, e veias roxas eram visíveis em seu pescoço.
                — Foi o veneno das aranhas. Talvez ele não tenha sido totalmente expurgado do corpo da sua irmã — disse Lady Liana, saindo das sombras calmamente.
                — O que você fez com minha irmã? — perguntou o garoto, exaltado. — O QUE VOCÊ FEZ COM ELA? DIGA! — a voz dele trovejava, mas Liana continuava indiferente.
                — Você não deveria sair por aí acusando as pessoas sem provas.
                — Você não me engana. Eu sei que aquelas árvores eram verdadeiras, e era você que as controlava! Foi você que colocou aquelas marcas na minha pele, e quando descobriu que nós iriamos embora, deixou minha irmã desse jeito. O que você quer de nós?!
                Lady Liana — ou seja lá quem ela fosse — deu alguns passos para a frente, com os longos cabelos roxos espalhando-se atrás de si. Um sorriso sutil e cruel brotou em seus lábios. Kevin sentiu o chão sumir sob seus pés enquanto a bruxa andava em sua direção, e mais uma vez os sussurros da floresta assombrada soaram em seus ouvidos. Um cheiro doce e inebriante emanava dela.
                — A vida é muito preciosa para ser desperdiçada com criaturas como vocês.
                Kevin não se lembrava de ter fechado os olhos, mas, mesmo assim, abriu-os. Uma cortina azul cercava-o, filtrando a luz do sol. Ele levantou-se e olhou em volta. Tudo estava em perfeita ordem, não fosse por sua cabeça, que nunca esteve tão pesada. O garoto tinha a impressão de que estava esquecendo alguma coisa, até que se lembrou da irmã e da bruxa. Correu desesperado para a porta, mas estava trancada. Jogou-se contra ela algumas vezes, sem conseguir resultado algum. Procurou o machado para arrombar a fechadura. Não o encontrou. Lembrou-se da janela. Chegando nela, olhou para baixo através do vidro grosso. A altura até o chão era bem grande, mas ele achava que seria capaz de escalar a parede. No entanto, ela também estava trancada. Correu o olhar pelo quarto procurando uma maneira de fugir dali, e deparou-se com a mesinha ao pé da cama. Agarrou-a pelos pés e jogou-a com toda a força contra o vidro, que se espatifou em milhares de cacos afiados. Kevin pulou o parapeito da sacada e começou a descer o muro segurando-se nas brechas entre as pedras. Quando estava a cerca de dois metros do chão, saltou e caiu em cima de um arbusto.
Ele caminhou em torno do palácio procurando uma entrada, mas todas estavam trancadas. Foi só depois de muito tempo que encontrou uma porta velha e rachada de dava num cômodo empoeirado. Saiu por outra porta para um corredor estreito e sinuoso. Deste corredor entrou em outro, e depois outro. Perto da estátua de uma velha corcunda encontrou uma escada com os degraus gastos. Desceu-os saltando de dois em dois, sem se importar com barulho que fazia. Um cheiro doce subia das profundezas­, enchendo a escuridão com um ar denso e inebriante. Ecos ressoavam nas paredes gastas e chegavam-lhe aos ouvidos. Vozes, suspiros, e outros sons indistinguíveis. A escada terminava numa câmara circular e rodeada de tochas. Arcos escuros abriam-se em toda a extensão da parede curva, dando a impressão de que sombras o observavam e iriam atacá-lo sem o menor aviso. Vozes pareciam vir de todos os lugares, enchendo o espaço cavernoso com os brados de uma multidão.
Kevin correu colado à parede, esperando descobrir onde estariam a bruxa e a irmã. Quando passava por um dos portais, uma lufada de ar quente e doce envolveu-o. Ele entrou tateando no corredor escuro, sentido sob suas mãos pedras ásperas e úmidas. Virou à direita, depois à esquerda, e mais uma vez para esquerda. Uma sutil luz dourada emanava de uma porta entreaberta no fim do corredor; ele caminhou até ela com passos leves e silenciosos, abrindo-a com todo o cuidado possível, mas, mesmo assim, um rangido alto denunciou sua presença. Liana ergueu a cabeça, revelando pupilas dilatas e sangue escorrendo por sua boca e queixo, dando-lhe a aparência de um animal feroz e roxo. Ela lançou ao garoto um olhar apático e desdenhoso, e um sorriso cheio de dentes abriu-se em seu rosto.
— Você demorou. Eu já estava me perguntando se alguma das minhas estátuas tinha lhe feito algo — a voz da bruxa soava assustadoramente alta naquela sala. — Veio buscar sua irmã? Só espere eu acabar e ela será toda sua.
Sophie repousava nua sobre uma mesa alta e estreita. Pequenos cortes abriam-se em seu ventre, garganta e pulsos, derramando finos fios de sangue sobre a pele pálida, num assustador contraste de vermelho e branco. Ela ainda respirava, mas com muita dificuldade. O machado de Kevin e o punhal da irmã estavam sobre uma pequena mesa cheia de velas do outro lado do cômodo. Ele começou a caminhar até lá calmamente, encarando a bruxa.
— O que você quer dela? — Kevin fez toda a força para parecer calmo, mas sua voz trêmula o denunciava. Ele só esperava que a bruxa não fosse capaz de ler mentes.
— Eu já te disse, queridinho. Quero apenas a sua vida. Nada além da sua vida — a última palavra saiu mais parecida com um silvo do que com uma voz humana.
— O que você quer é vida? Então venha pega-la — o garoto pegou o punhal sobre a mesa e fez comprido corte no seu braço esquerdo, largando a arma em seguida. Ela caiu no chão, enchendo a sala com som de metal contra pedra. — Venha, pode beber. Sou muito mais forte do que ela. Existe muito mais vida em mim do que nela. Venha. Beba — ele estendeu o braço cortado em direção à bruxa.
Liana caminhou até ele trôpega, suas narinas arreganhando-se. Agarrando o braço dele com as duas mãos, ela bebeu o sangue avidamente. Um prazer supremo tomava o corpo da bruxa enquanto ela sugava o líquido quente do garoto, e nem reparou quando ele puxou um caco de vidro que trazia escondido na cintura. Kevin enfiou o caco afiado na barriga dela com toda a força, até não poder mais. Liana largou-o e andou para trás, olhando para o sangue que jorrava de sua barriga. Ela ergueu o olhar para o garoto, escancarou a boca e soltou uma gargalhada tão profunda e poderosa que fez o coração dele parar, e seu corpo todo gelou. Liana arrancou o caco de vidro e espatifou-o na palma da mão. Seu olhar havia se tornado ainda mais feroz. Não existia mais nada de humano nela.
— Garoto idiota! Você achou que seria capaz de me matar? — ela lhe deu uma tapa tão forte que Kevin voou sobre a mesa cheia de tocos de velas às suas costas. Ela espatifou-se sob seu peso, atirando lascas de madeira e cera quente em todas as direções. A bruxa debruçou-se sobre o garoto, derramando sobre ele seu característico cheiro doce. — Eu fui muito boa até agora, livrando-lhe de ver sua irmã morrer lentamente, mas você não me dá escolha. Você irá escutar cada grito de dor e desespero dela, verá seu corpo contorcer-se de agonia e presenciará a vida deixando-a — sobre a mesa, Sophie acordou com um suspiro, começando a gritar e a chorar quase que imediatamente.
Kevin olhou a bruxa nos olhos. Todo o medo havia abandonado o garoto, e um ódio abrasador queimava suas entranhas.
— Eu acho que não — ele ergueu o machado, que caíra próximo de sua mão, com a velocidade de raio, partindo ao meio o pescoço da bruxa com um único golpe. A cabeça cheia de cabelos roxos tombou para o lado com um baque seco, e o corpo de Liana desabou para trás.
Kevin largou a arma e correu até a irmã, que chorava copiosamente sobre a mesa. Ele passou a mão nos seus cabelos e sorriu para ela. Sophie retribuiu o sorriso entre soluços, ainda com os olhos cheios de lágrimas.
— Tudo vai ficar bem agora — ele disse, também chorando. — Acabou.

5 comentários:

Claudio Chamun disse...

Acabou nada!
Eles ainda têm que procurar a mãe.
O que tu estás esperando?
Ajude os garotos a encontrá-la.

www.cchamun.blogspot.com.br
Histórias, estórias e outras polêmicas

Jefferson Reis disse...

Também acho que você deve continuar.

Pedro Lourenço disse...

Vou tentar (mas não garanto nada)

Anônimo disse...

Continue sim! ;)

Claudio Chamun disse...

Pedro:

Tu consegues cara!
Talento te sobra.