Páginas

terça-feira, 29 de janeiro de 2013

MORRO A CADA FIM




Carrego em mim todos os medos do mundo.
                Acordo sem ar. O corpo quente e a alma gelada. Fantasmas que desconheço debruçam-se sobre mim, rindo, espiando, ferindo. Levanto. Caminho. Olho no espelho. Mas não é meu rosto que vejo refletido, e sim o de uma garotinha que chora com medo do pai alcoólatra. Corro dela, não a quero olhando-me assustada. Não quero me importar. Mas não há para onde fugir; tudo são espelhos a minha volta. Dores que não são minhas e que eu sinto.
                Derramo as mesmas lágrimas que uma mãe chorou pelo filho assassinado; sinto o mesmo terror que o jovem sentiu quando viu a arma apontada para sua cabeça; experimento o medo sentido pelo assassino antes de puxar o gatilho, o medo do futuro e do imutável. Não é esta minha história. Não existe sangue ou tragédia em minha alma, mas, então, por que sou obrigado a carregar a dor da mãe, do rapaz e do assassino? Quando foi decidido que devo transformar em arte a miséria do homem? Não existe beleza na dor e no medo. Colocam a arma do crime em minhas mãos e dizem “Faça-a bela”. Não posso, não devo. Sou igualmente assassino se uso a arma, não importa para qual fim. E para quê? Enquanto escrevo este texto, cada verbo rasga-me a alma, e você fica aí pensando no sorvete que está no congelador, ou em alguém que não lhe ama. Nego-me a escrever com sangue alheio.
                Na escola não nos ensinam a ser humanos. Não nos ensinam a chorar ou abraçar, a odiar ou ser odiados. Vivemos todos nus e vulneráveis. A pele exposta, o perigo próximo. Caminhamos desde o começo em direção ao fim. Podemos nega-lo, mas o fato é que ele não tarda a chegar. E enquanto isso, o que fazemos? Tentamos ser felizes, tentamos não sofrer... Pare de tentar! SIMPLESMENTE SEJA! Seja feliz, agora. Pare de ler este texto e vá tomar um banho de mangueira, ou tomar aquele sorvete que está na geladeira. Sofra também, sempre que possível. Não procure a dor, apenas sinta-a. Chore o suficiente para a ocasião, depois enxugue as lágrimas e erga a cabeça, e seja feliz novamente. Cuide bem das marcas que a tortura lhe deixar, exiba-as. Lembre-se das mãos trêmulas e do desespero. Sinta coçar a corda que você amarrou no pescoço. Transforme em história sua história. Sua dor é digna de arte, por mais terrível que seja.
                Não seja como eu, portador de todas as dores da humanidade. Não seja o artista; seja a arte. Acordo todos os dias com as mãos sujas de sangue, mas você pode fazer diferente. Você pode escolher, então não escolha sofrer além do necessário. Você não precisa disso para viver. Agora eu engatilho a arma a atiro num inocente. A desgraça dele é a matéria prima para minha arte. Escrevo como era magnífica a arma, e uso um parágrafo inteiro para dissertar sobre a beleza da dor. Sim, entreguei-me às correntes que tanto condeno. Sou um carrasco e não um escritor, mas você não precisa ser assim. Sai daqui, você não quer que o sangue espirre em seu rosto. Vá sentir seus próprios medos.

quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

LAMA E CINZAS




Imagine a cena: uma garota, ajoelhada, observa atentamente um livro pegar fogo na sua frente. O cenário é uma floresta sombria e gélida, mas não silenciosa. Gritos ecoam entre as árvores, altos o suficiente para serem ouvidos a quilômetros de distância. Dezenas de homens e mulheres furiosos cercam a garota, empunhando tochas, facões, pás, toras de madeira e outros objetos capazes de ferir e matar. Um homem destaca-se da multidão. Ele aponta uma flecha para a menina indefesa no centro da clareira. Seus olhos estão cravados nela, mas ela parece não nota-lo; na verdade, ela parece não haver percebido ainda a horda furiosa que a cerca. Toda a sua atenção está posta no livro em chamas. Nada a perturba.

Este é o final da história; agora olhemos para trás, para o começo.

                Mais um dia cinza. A estação das chuvas havia chegado, e junto com ela, frio e tristeza. O Beco dos Enforcados era um verdadeiro lamaçal, repleto de pessoas apressadas esbarrando umas nas outras e apinhando as barracas do mercado, para êxtase dos vendedores. Cachorros esqueléticos dormiam sob as lonas; resto de comida apodreciam e misturavam-se à lama negra; ratos do tamanho de gatos esgueiravam-se pelos cantos. Apesar do cenário aparentemente caótico, tudo estava como deveria estar, não fosse pelo homem de vestes esfarrapadas que perseguia furtivamente uma garota através da multidão. Ela já o havia percebido, e tentava fugir e despista-lo de todas as maneiras possíveis, mas era inútil; ele não tirava os olhos dela. O espaço entre os dois ficava cada vez menor, não importava quanto esforço ela fizesse para escapar. A garota, por fim, deu-se por vencida, e abandonou todas as esperanças de conseguir fugir, mas, ao olhar para trás, percebeu que o homem não mais a seguia. Ela só teve tempo de parar e recuperar o fôlego, antes que uma mão grande e calejada agarrasse seu pulso e puxasse-a para uma viela deserta.
                — Por que você tentou fugir? — sussurrou o homem, com a voz carregada de uma fúria falsamente contida. Seus olhos estavam vermelhos, fazendo-o parecer com os demônios dos quais o pastor falava.
                — Eu não tentei fugir, Sr. Henrik. Eu só estava apressada.
                — O que você está escondendo?
                — Me solte Sr. Henrik. O senhor está me machucando.
                — Diga! — ele aproximou seu rosto do da garota, como uma fera farejando sua presa.
                — Eu não sei do que o senhor está falando!
                — Claro que sabe. Eu estou falando da minha filha, a Samantha. Você lembra dela? Claro que lembra; você estava lá quando tudo aconteceu; você e suas amiguinhas, que, por alguma razão que eu desconheço, também estão tentando fugir de mim. Agora, diga, o que vocês sabem que eu não sei?
                — Eu não sei de nada, senhor! Eu juro!
                — Você estava lá. Você viu!
                — Ela se jogou, senhor. Foi isso que aconteceu. Agora me deixe ir, por favor — a esta altura, a garota já se desmanchava em lágrimas. O terror impedia-a de respirar normalmente.
                — Nós dois sabemos que minha filha não se matou. Agora fale a verdade.
                — Eu já disse, senhor...
                — A VERDADE! — o pouco autocontrole que ele tinha abandonou-o completamente.
                — Foi um acidente! — ela não suportava mais, e desabou de joelhos aos prantos. — Foi um acidente.
                — Acidente? O que você quer dizer?
                — Eu não posso falar mais que isso, entenda...
                — Já perdi tudo o que tinha na vida. Eu não me importaria de ir para a forca porque matei a assassina da minha filha. Agora fale a verdade, ou eu juro que quebro seu pescoço aqui e agora.
                — Foi um acidente, Sr. Henrik. Nós não queríamos que aquilo acontecesse. Ela estava... dançando, e chegou perto demais da ponta. Nós iriamos tirá-la de lá, mas a Eva disse que estava tudo bem... então ela... caiu. Não pudemos fazer nada, senhor. Eu juro.
                — De que Eva você está falando? A filha dos Rudiger?
                — Sim, ela mesma. Mas não conte por aí o que eu falei ao senhor. Ela... — a garota calou-se e ficou pálida como a cera de uma vela. Aparentemente havia se lembrado de algo terrível, mas logo após esta reação inesperada, ela olhou George Henrik nos olhos, e voltou a falar com uma voz impressionantemente firme — Posso ir agora, senhor? Meus pais me esperam.
                — O que você ia falar sobre a Eva?
                — Eu de fato preciso ir.
                — Se ela tem alguma culpa na morte da minha filha, conte-me, por favor.
                A garota passou longos segundos encarando-o, como se tentasse enxergar sua alma através de pele e ossos. Ela parecia estar lendo um mapa. Só depois de seu minucioso exame, decidiu falar.
                — Não procure a Eva, Sr. Henrik. Ela não é a mesma de antes. Ela mudou depois que achou aquele livro.
                — De que livro você está falando?
                — O livro que ela encontrou na floresta. Ela não o larga mais. Fala sobre ele o tempo todo, e nos faz repetir as palavras que tem nele. O liamos na noite em que Samantha caiu.
                George engoliu em seco. O frio que ele sentia subir pela espinha era um sinal de que algo estava errado. Muito errado.
                — E o que tem nesse livro? — ele perguntou, temendo a resposta.
                — Coisas antigas. Coisas que não estão na Bíblia, e que ninguém deveria saber.

●●●

                — Isso é loucura George! São apenas crianças! — gritou o pastor, perdendo a pouca paciência que lhe restava.
                — Eu ouvi da boca dela! Ela disse que existiam “coisas antigas” no livro, que não estão na Bíblia. É bruxaria!
                — É tolice! — o pastor aproximou-se de George, e colocou a mão em seu ombro — Entendo que você esteja confuso...
                — Confuso? O senhor acha que eu estou confuso?! Minha filha despencou de um penhasco! Minha mulher foi embora gritando que eu era o culpado! MINHA VIDA ACABOU! E agora o senhor diz que estou confuso? Não, eu não estou confuso. Eu estou irado, e quero pegar o responsável pela morte de Samantha, não importa se é uma garotinha ou o próprio Diabo!
                — Controle-se homem. Você está na casa de Deus. Sei o quão doloroso é o que você está sentindo, mas não podes sair por aí acusando garotinhas de praticar bruxaria. São crianças. Tudo não passa de um mal entendido, tenho certeza disso. Escute-me. Vou até a casa dos Rudiger e pedir para que Eva me mostre este livro, e, se eu encontrar algo de estranho nele, você será o primeiro a saber. Estamos de acordo? — George anuiu de cabeça baixa. — Ótimo. Agora vá para casa. Vai ficar tudo bem.

                Mas não ficou tudo bem. Antes de o Sol se por, uma camponesa, que trabalhava próximo à casa dos Rudiger, encontrou os corpos do pastor, da mãe e do pai de Eva jogados no limite da floresta. Onde deveriam estar os olhos, havia apenas buracos escuros, e suas entranhas serviam de jantar para incontáveis e estridentes corvos.
                O caos se instalou. Portas foram arrombadas. Garotinhas foram arrancadas dos braços de suas desesperadas mães. George interrogou uma por uma, inclusive a garota que havia encontrado mais cedo no mercado. Ela não parecia a mesma menina assustada de antes. Não importa o quão ameaçada ela fosse, não falava nada. No entanto, quando George já havia desistido de extrair alguma informação dela, ela falou:
                — Desista. Vocês não vão conseguir pega-la. Ela não é como o resto de nós. Ela sabe coisas que não sabemos; que ninguém sabe. Você viu o que ela fez com os próprios pais, agora imagine o que ela vai fazer quando colocar as mãos em você. Desista desta loucura enquanto pode.
                — Onde ela está?
                — Agora vejo de onde Samantha tirou toda aquela teimosia. Ela não queria mais participar dos rituais, mas é claro que nunca a deixaríamos sair. Você precisava ter escutado ela gritando quando a Eva a empurrou do penhasco. Foi hilário! Parecia uma porca! — a garota caiu na gargalhada, gargalhada esta que não parou quando George deu-lhe um bofetão forte o suficiente para derrubar um homem.
                — Queime-a — disse George para um jovem de olhar assustado que acompanhava o interrogatório.
                — Como, senhor?
                — Queime-a. Ela e todas as outras. Faça uma grande fogueira na praça e queime-as. E procure voluntários para entrar comigo na floresta. Vamos caçar aquela putinha satânica.

                George e seus companheiros partiram deixando para trás uma gigantesca pira cheia de garotas em chamas. Ainda podiam-se ouvir os gritos, mesmo de muito longe. Não havia lua ou estrelas no céu, mas havia tochas na terra. Muitas tochas; empunhadas por uma multidão furiosa. Um exército de bolas de fogo.
                Não foi difícil achar Eva. Aparentemente, ela não estava tentando se esconder. Encontraram-na ajoelhada no meio de uma clareira, observando um livro — o livro — pegar fogo. Ela não esboçou nenhuma reação quando a multidão a cercou, nem quando George deu um passo à frente e apontou uma flecha para ela. Ele esperou que Eva falasse ou fizesse algo, mas nada aconteceu.
                — Por que você está queimando o livro? — George não suportava o silêncio dela; era perturbador.
                Eva ergueu a cabeça, e só então pareceu nota-lo, mas não demostrou mais interesse do que antes.
                — Não preciso mais dele — era gelo a sua voz, fria e penetrante.
                Ela levantou-se lentamente, e começou a despir-se. A cena deixou todos os presentes horrorizados, principalmente quando puderam enxergar o que havia sob seu vestido. Inicialmente pensaram ser cortes, finos e tortos, cobrindo cada sentimento de sua pele, mas só depois de olharem-na mais detidamente é que perceberam que eram palavras. Um monte delas. Ainda brotava sangue de algumas. A vadia havia rasgado os textos do livro em sua própria pele.
                George não esperou que ela fizesse mais nada; puxou a corda do arco e preparou-se para atirar. Eva limitou-se a olha-lo com desdém, e falou:
                — Vocês são tão fracos.
                As palavras que ela disse depois disso eram incompreensíveis para os presentes, mas todos perceberam o quão fortes elas eram. Havia poder nelas. O poder sobre a vida e a morte.

sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

ESTE LUGAR QUE JAMAIS EXISTIU

Quais palavras devo usar para dizer que falhei? Como se chamam as histórias em que o protagonista entra e sai de mãos abanando, sem amores perdidos ou paixões consumadas? Se é verdade que na poesia tudo se sente, então me fale como pensam as pedras, que da beira da estrada observam a vida passar, sem jamais voltar ou parar, porque se parar, vida deixa de ser, e aí as pedras já não enxergam mais nada. No meio do caminho tinha uma pedra. Tinha uma pedra no meio do caminho. Sou pedra, mas não estou no meio do caminho. Não sirvo para os poemas.
                Escuto gargalhadas e sinto-me feliz por elas. Boas lembranças. Mas olho para trás e percebo que não era eu que ria, quem cantava ou quem vivia. É estranho lembrar-se de algo que você não viveu; sentir coçar na pele feridas que nunca foram abertas. Aterrorizado, dou meia volta e corro em direção aos momentos felizes. Não os meus, mas os de alguém que passou por mim. Não era um sorriso; eram só dentes à mostra. Pensei que havia dançado, mas percebi que eu só não queria ficar encostado na parede. Lembro-me do calor dos abraços, mas eu nem estava lá. Nunca estive.

                — O que sou eu então? Um fantasma?
                — Não. Fantasmas sentem e falam, assustam e são assustados. Fantasmas já viveram um dia, mas você sequer abriu os olhos. Você é o vento na janela, ou a chama solitária de uma vela. Você parece se mexer, mas não mexe.
               
                Não pertenço à minha história. Fui feliz num lugar que jamais existiu. Percebo agora que sou a corrente, e não o acorrentado. Sou o pássaro devorador de deuses. Sou o que acontece entre um capítulo e outro, aquilo que ninguém escreveu e que a ninguém interessa.
                Máscara grega. Farsa. História inventada. Passado inexistente. Quarto escuro. Tela em branco. Sou a fechadura para a qual nunca fabricaram uma chave.
                Entrego esta caneta em suas mãos. Pegue-a. Não tenha medo. Escreva minha história. Dê títulos aos capítulos e numere as páginas. Coloque qualquer coisa de magia, de surreal. Crie uma cena em que a lua me ilumine, em que eu pegue na mão de alguém. Não receie em escrever tragédias ou cenas fortes, mas não se esqueça de me fazer sorrir de vez em quando. Não precisa avisar-me quando a tinta da caneta estiver acabando, apenas escreva o mais intensamente que você conseguir, até o fim. Mas comece agora! JÁ! Estou pronto para nascer.