Imagine a cena: uma garota,
ajoelhada, observa atentamente um livro pegar fogo na sua frente. O cenário é
uma floresta sombria e gélida, mas não silenciosa. Gritos ecoam entre as
árvores, altos o suficiente para serem ouvidos a quilômetros de distância.
Dezenas de homens e mulheres furiosos cercam a garota, empunhando tochas,
facões, pás, toras de madeira e outros objetos capazes de ferir e matar. Um
homem destaca-se da multidão. Ele aponta uma flecha para a menina indefesa no
centro da clareira. Seus olhos estão cravados nela, mas ela parece não nota-lo;
na verdade, ela parece não haver percebido ainda a horda furiosa que a cerca.
Toda a sua atenção está posta no livro em chamas. Nada a perturba.
Este é o final da história; agora
olhemos para trás, para o começo.
Mais um
dia cinza. A estação das chuvas havia chegado, e junto com ela, frio e
tristeza. O Beco dos Enforcados era um verdadeiro lamaçal, repleto de pessoas
apressadas esbarrando umas nas outras e apinhando as barracas do mercado, para
êxtase dos vendedores. Cachorros esqueléticos dormiam sob as lonas; resto de
comida apodreciam e misturavam-se à lama negra; ratos do tamanho de gatos
esgueiravam-se pelos cantos. Apesar do cenário aparentemente caótico, tudo
estava como deveria estar, não fosse pelo homem de vestes esfarrapadas que
perseguia furtivamente uma garota através da multidão. Ela já o havia
percebido, e tentava fugir e despista-lo de todas as maneiras possíveis, mas
era inútil; ele não tirava os olhos dela. O espaço entre os dois ficava cada
vez menor, não importava quanto esforço ela fizesse para escapar. A garota, por
fim, deu-se por vencida, e abandonou todas as esperanças de conseguir fugir,
mas, ao olhar para trás, percebeu que o homem não mais a seguia. Ela só teve
tempo de parar e recuperar o fôlego, antes que uma mão grande e calejada agarrasse
seu pulso e puxasse-a para uma viela deserta.
— Por
que você tentou fugir? — sussurrou o homem, com a voz carregada de uma fúria
falsamente contida. Seus olhos estavam vermelhos, fazendo-o parecer com os
demônios dos quais o pastor falava.
— Eu
não tentei fugir, Sr. Henrik. Eu só estava apressada.
— O que
você está escondendo?
— Me
solte Sr. Henrik. O senhor está me machucando.
— Diga!
— ele aproximou seu rosto do da garota, como uma fera farejando sua presa.
— Eu
não sei do que o senhor está falando!
— Claro
que sabe. Eu estou falando da minha filha, a Samantha. Você lembra dela? Claro
que lembra; você estava lá quando tudo aconteceu; você e suas amiguinhas, que,
por alguma razão que eu desconheço, também estão tentando fugir de mim. Agora,
diga, o que vocês sabem que eu não sei?
— Eu
não sei de nada, senhor! Eu juro!
— Você
estava lá. Você viu!
— Ela
se jogou, senhor. Foi isso que aconteceu. Agora me deixe ir, por favor — a esta
altura, a garota já se desmanchava em lágrimas. O terror impedia-a de respirar
normalmente.
— Nós
dois sabemos que minha filha não se matou. Agora fale a verdade.
— Eu já
disse, senhor...
— A
VERDADE! — o pouco autocontrole que ele tinha abandonou-o completamente.
— Foi
um acidente! — ela não suportava mais, e desabou de joelhos aos prantos. — Foi
um acidente.
—
Acidente? O que você quer dizer?
— Eu
não posso falar mais que isso, entenda...
— Já
perdi tudo o que tinha na vida. Eu não me importaria de ir para a forca porque
matei a assassina da minha filha. Agora fale a verdade, ou eu juro que quebro
seu pescoço aqui e agora.
— Foi
um acidente, Sr. Henrik. Nós não queríamos que aquilo acontecesse. Ela
estava... dançando, e chegou perto demais da ponta. Nós iriamos tirá-la de lá,
mas a Eva disse que estava tudo bem... então ela... caiu. Não pudemos fazer
nada, senhor. Eu juro.
— De
que Eva você está falando? A filha dos Rudiger?
— Sim,
ela mesma. Mas não conte por aí o que eu falei ao senhor. Ela... — a garota
calou-se e ficou pálida como a cera de uma vela. Aparentemente havia se
lembrado de algo terrível, mas logo após esta reação inesperada, ela olhou
George Henrik nos olhos, e voltou a falar com uma voz impressionantemente firme
— Posso ir agora, senhor? Meus pais me esperam.
— O que
você ia falar sobre a Eva?
— Eu de
fato preciso ir.
— Se
ela tem alguma culpa na morte da minha filha, conte-me, por favor.
A
garota passou longos segundos encarando-o, como se tentasse enxergar sua alma
através de pele e ossos. Ela parecia estar lendo um mapa. Só depois de seu
minucioso exame, decidiu falar.
— Não
procure a Eva, Sr. Henrik. Ela não é a mesma de antes. Ela mudou depois que
achou aquele livro.
— De
que livro você está falando?
— O
livro que ela encontrou na floresta. Ela não o larga mais. Fala sobre ele o
tempo todo, e nos faz repetir as palavras que tem nele. O liamos na noite em
que Samantha caiu.
George
engoliu em seco. O frio que ele sentia subir pela espinha era um sinal de que
algo estava errado. Muito errado.
— E o
que tem nesse livro? — ele perguntou, temendo a resposta.
—
Coisas antigas. Coisas que não estão na Bíblia, e que ninguém deveria saber.
●●●
— Isso
é loucura George! São apenas crianças! — gritou o pastor, perdendo a pouca
paciência que lhe restava.
— Eu ouvi
da boca dela! Ela disse que existiam “coisas antigas” no livro, que não estão
na Bíblia. É bruxaria!
— É
tolice! — o pastor aproximou-se de George, e colocou a mão em seu ombro —
Entendo que você esteja confuso...
—
Confuso? O senhor acha que eu estou confuso?! Minha filha despencou de um
penhasco! Minha mulher foi embora gritando que eu era o culpado! MINHA VIDA
ACABOU! E agora o senhor diz que estou confuso? Não, eu não estou confuso. Eu
estou irado, e quero pegar o responsável pela morte de Samantha, não importa se
é uma garotinha ou o próprio Diabo!
—
Controle-se homem. Você está na casa de Deus. Sei o quão doloroso é o que você
está sentindo, mas não podes sair por aí acusando garotinhas de praticar
bruxaria. São crianças. Tudo não passa de um mal entendido, tenho certeza
disso. Escute-me. Vou até a casa dos Rudiger e pedir para que Eva me mostre
este livro, e, se eu encontrar algo de estranho nele, você será o primeiro a
saber. Estamos de acordo? — George anuiu de cabeça baixa. — Ótimo. Agora vá para
casa. Vai ficar tudo bem.
Mas não
ficou tudo bem. Antes de o Sol se por, uma camponesa, que trabalhava próximo à
casa dos Rudiger, encontrou os corpos do pastor, da mãe e do pai de Eva jogados
no limite da floresta. Onde deveriam estar os olhos, havia apenas buracos
escuros, e suas entranhas serviam de jantar para incontáveis e estridentes
corvos.
O caos se instalou. Portas foram arrombadas. Garotinhas foram arrancadas dos braços de
suas desesperadas mães. George interrogou uma por uma, inclusive a garota que
havia encontrado mais cedo no mercado. Ela não parecia a mesma menina assustada
de antes. Não importa o quão ameaçada ela fosse, não falava nada. No entanto,
quando George já havia desistido de extrair alguma informação dela, ela falou:
—
Desista. Vocês não vão conseguir pega-la. Ela não é como o resto de nós. Ela
sabe coisas que não sabemos; que ninguém sabe. Você viu o que ela fez com os
próprios pais, agora imagine o que ela vai fazer quando colocar as mãos em
você. Desista desta loucura enquanto pode.
— Onde
ela está?
— Agora
vejo de onde Samantha tirou toda aquela teimosia. Ela não queria mais
participar dos rituais, mas é claro que nunca a deixaríamos sair. Você
precisava ter escutado ela gritando quando a Eva a empurrou do penhasco. Foi
hilário! Parecia uma porca! — a garota caiu na gargalhada, gargalhada esta que
não parou quando George deu-lhe um bofetão forte o suficiente para derrubar um
homem.
—
Queime-a — disse George para um jovem de olhar assustado que acompanhava o
interrogatório.
— Como,
senhor?
—
Queime-a. Ela e todas as outras. Faça uma grande fogueira na praça e queime-as.
E procure voluntários para entrar comigo na floresta. Vamos caçar aquela
putinha satânica.
George
e seus companheiros partiram deixando para trás uma gigantesca pira cheia de
garotas em chamas. Ainda podiam-se ouvir os gritos, mesmo de muito longe. Não
havia lua ou estrelas no céu, mas havia tochas na terra. Muitas tochas;
empunhadas por uma multidão furiosa. Um exército de bolas de fogo.
Não foi
difícil achar Eva. Aparentemente, ela não estava tentando se esconder.
Encontraram-na ajoelhada no meio de uma clareira, observando um livro — o livro — pegar fogo. Ela não esboçou
nenhuma reação quando a multidão a cercou, nem quando George deu um passo à
frente e apontou uma flecha para ela. Ele esperou que Eva falasse ou fizesse
algo, mas nada aconteceu.
— Por
que você está queimando o livro? — George não suportava o silêncio dela; era
perturbador.
Eva
ergueu a cabeça, e só então pareceu nota-lo, mas não demostrou mais interesse
do que antes.
— Não
preciso mais dele — era gelo a sua voz, fria e penetrante.
Ela
levantou-se lentamente, e começou a despir-se. A cena deixou todos os presentes
horrorizados, principalmente quando puderam enxergar o que havia sob seu
vestido. Inicialmente pensaram ser cortes, finos e tortos, cobrindo cada
sentimento de sua pele, mas só depois de olharem-na mais detidamente é que
perceberam que eram palavras. Um monte delas. Ainda brotava sangue de algumas.
A vadia havia rasgado os textos do livro em sua própria pele.
George não esperou que ela
fizesse mais nada; puxou a corda do arco e preparou-se para atirar. Eva limitou-se a olha-lo com desdém, e falou:
— Vocês
são tão fracos.
As
palavras que ela disse depois disso eram incompreensíveis para os presentes,
mas todos perceberam o quão fortes elas eram. Havia poder nelas. O poder sobre
a vida e a morte.