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quarta-feira, 22 de agosto de 2012

O OGRO


       

            Não havia nuvens no céu. O Sol, imperioso, ameaçava transformar em pó qualquer coisa que se aventurasse sob suas labaredas. Toda a abóbada celeste era de um azul incandescente, se é que este tom existe. André andava cobrindo os olhos para não cegar-se com os raios do Sol, e, eventualmente, prendendo a respiração para proteger-se da fumaça dos carros e da poeira que vinha em ondas. O presente balançava teimosamente na sacola, e o garoto evitava pensar nos estragos que todas aquelas oscilações poderiam provocar ao delicado artefato. “O melhor presente” ele entoava como um mantra. “O melhor presente”. Encontrou-o numa lojinha do centro, escondida no terceiro andar de um prédio encardido. Havia juntado a suas economias de meses; queria comprar um presente que chamasse a atenção de todos. Já podia até ver os sorrisos de admiração estampados nos rostos dos amigos. Ele sabia que Jonas gostava de animes e RPG. Procurou alguma peça condizente com os gostos do aniversariante. Depois de profunda reflexão, escolheu a estatueta de um ogro, ou quase um, de um palmo de altura. Ele era marrom-esverdeado, e trazia uma armadura de couro e ferro, ornada com diminutos crânios e espículas. Da cabeça brotavam dois chifres enrugados e amarelados e da face o mais puro ódio. Mas a parte mais espantosa da figura não era nenhum chifre afiado ou olhar furioso, era, na verdade, um machado de guerra que carregava na sua mão direita, forjado em algum metal resplandecente, que lançava um espectro de cores sobre o balcão da loja. Era quase do tamanho da criatura, e sua lâmina parecia ser realmente capaz de arrancar a cabeça, não de um ser humano, mas de um rato ou lagartixa, talvez. A fera havia sido retratada em posição de ataque, com a arma projetando-se a sua frente, o que o tornava ainda mais assustador. A vendedora disse que se chamava Grinzun; que era o segundo guardião do sétimo portão do quinto nível de um game cujo nome André jamais lembrou. Ela também disse que era importado, e devia ser mesmo, pois trazia “MADE IN TAIWAN” gravado na sua base. Ele não sabia onde ficava Taiwan, mas se vinha de lá, realmente era importado. Quando perguntou o preço, a vendedora esboçou um sorriso e olhou-o de cima a baixo, como que para verificar se ele era digno (ou capaz) de comprar aquela “obra de arte”.
                — Noventa reais — saiu seca e placidamente de sua boca com piercing.
                André imediatamente tirou os olhos do machado prateado e levantou-os para a vendedora, para verificar se era algum tipo de piada, mas tudo o que ela demonstrava era um ar de dúvida na sua empoada face. Convencido de que não era uma brincadeira, André voltou os olhos para a estatueta. “Mas não passa de um boneco”, falou uma voz desdenhosa e incrédula dentro de si. Ele almejou dar um passo para traz, mas o olhar da fera, da vendedora, e agora também de um jovem que lia um gibi perto da janela, estavam cravados nele. “O melhor presente”, ele repetiu, como que para lembrar a si mesmo o proposito de estar ali. Mas uma vez sua vista vagou para a vendedora, que já começava a achar graça na cara assustada do garoto. O rapaz no canto assistia tudo aquilo curioso, e nem dava mais atenção ao gibi, que formava orelhas em seu colo. André olhou mais uma vez para o “guardião do portão”. Ele apontava o machado para o seu coração, e trazia o olhar de quem pode ler todos os seus segredos e não gosta nem um pouco deles.
                — Vocês embrulham para presente?
                A ideia de barganhar nem passou pela sua cabeça, tamanha foi a confusão mental que o tomou naquele momento. A loja não embrulhava para presente. Ele mesmo embrulhou-o com um pedaço de papel azul-marinho com listras cinza que achou entre as velharias do armário, e fita durex. Agora o presente balançava na sacola, com o embrulho amaçado e a fita adesiva torta. “O melhor presente”.  Não era mais um desejo vago, era a mais real das certezas. “O melhor presente”. O ônibus demorou, e quando chegou, chegou cheio. O ar lá dentro cheirava a suor, fumaça e desodorante vagabundo. Uma senhora simpática de uns sessenta anos ofereceu-se para segurar o pacote.
                — Não, obrigado — ele respondeu sem pensar duas vezes. Jamais deixaria um estranho colocar as mãos naquele “tesouro”, nem que fosse a vovozinha da Chapeuzinho Vermelho. O ônibus chegou ao seu destino, e depois de alguns pedidos de passagem e empurrões, mais para abrir caminho para o presente do que para ele próprio, finalmente conseguiu descer. O Sol ali não era menos impiedoso do que o de antes, mas o de agora parecia parabeniza-lo pelo presente, derramando sua luz pela ampla rua arborizada. Até o azul do céu havia deixado de ser incandescente (esse tom existe?). Ele marchou – sim, marchou! – rumo a casa do aniversariante, na rua Abílio Dias Filho, da qual nunca tinha ouvido falar. Jamais havia ido a casa do Jonas, então ficou espreitando o número das casas. O convite dizia que era a 908. A residência a sua direita era a 137. Nunca fora grande amigo do Jonas. Garoto alto, forte e bonito, ele fazia parte da equipe de vôlei e era muito popular na escola. Raramente trocava uma palavra com André, a não ser para perguntar as horas ou tirar alguma dúvida das questões de matemática, ou história, ou inglês… na verdade pensar não era o seu forte. “Então por que você vai a essa festa, se ele não é seu amigo?” perguntou sua mãe depois de mostrar-lhe o convite. “Porque ele me convidou”, respondeu. Na verdade ele havia convidado toda a turma, mas essa parte poderia ser omitida. “Por que dar-lhe um presente tão caro? Dinheiro não nasce em árvore. Na minha época, eu jamais poderia dar trinta reais num brinquedo...” e assim sua mãe continuou o discurso de como as coisas eram difíceis no tempo dela e blá, blá, blá. Ela não sabia o verdadeiro preço do presente, e nem precisava saber. Tudo o que importava era que ele lhe daria o melhor presente e tornar-se-ia seu novo amigo de infância, e, quem sabe, um dia, talvez, seria tão popular quanto ele.
                Ele chegou a casa. Era grande e de dois andares. Tinha as paredes pintadas de branco e um jardim com flores queimadas pelo sol cercava-a de todos os lados. Tocou a campainha. Uma jovem de pele escura veio abrir o portão. Não deu mais do que uma breve espreitada na sacola, então o deixou entrar, sem dizer uma palavra nem lhe lançar o mais sutil sorriso. Ele andou em direção à porta da casa, que estava aberta. Lá dentro encontrou alguns de seus amigos, e tantos outros que nunca havia visto. O ar no interior da casa era morno e pesado, e cheirava a eucalipto. A mesa dos doces estava num canto, intocada, com um grande bolo com granulados azuis e verdes cobrindo-o. Tinha quadros espalhados por todos os lados: pinturas estranhas nas paredes, fotos sobre os móveis e um uniforme de vôlei na parede oposta a porta, ladeado por medalhas de todos o tamanhos e formatos, sendo a maioria douradas, e algumas prateadas. O que mais chamava a atenção era televisão, daquelas fininhas, e enorme. André, na sua cândida inocência, julgou que tivesse mais de cem polegadas.
                Lançando o olhar mais detidamente pela sala, percebeu que muitos dos seus colegas de escola que Jonas havia convidado não estavam ali. Encontrou Thiago, seu melhor amigo, sentado numa cadeira perto de um vaso de flores purpuras, com uma expressão acuada. Sentou-se ao seu lado. Sem nem olhar para ele, Thiago falou:
                — Ainda bem que você chegou. Pensei que não vinha mais. Ele vai começar a abrir os presentes.
                Institivamente ele olhou para o colo do amigo, onde estava um grande embrulho de papel vermelho com bolas douradas. O tamanho assustou-o um pouco, mas depois se convenceu de que não devia ser nada demais. Posteriormente correu a vista pela sala, a procura do aniversariante, e encontrou-o sentado num grande sofá vermelho, ao lado da mãe. Ele estava imaculadamente vestido e penteado, só sorrisos, enquanto a mãe não tinha olhos para ninguém, além dele. Um garoto de camisa verde que ele não conhecia foi o primeiro entregar-lhe o presente. Depois de rasgar rapidamente o embrulho, Jonas tirou de dentro de uma caixa um carrinho azul e amarelo. Depois de agradecer polidamente, jogou-o de lado. E assim se sucedeu por um bom tempo. Recebia o presente. Desembrulhava-o. Agradecia. Jogava-o de lavo. Ele ganhou mais um carrinho, três bolas de vôlei, muitas roupas, alguns bonecos e um quebra-cabeça, que ele visivelmente desgostou. Então chegou a vez do Thiago. Ele levantou-se e andou assustado em direção ao aniversariante, que se sentava como um rei no seu trono vermelho, rodeado de presentes. Thiago entregou tremendo o pacote, que Jonas tirou de suas mãos sem cerimônia. A curiosidade tomava conta dos pensamentos de André, que esticava o pescoço na esperança de conseguir enxergar o conteúdo do embrulho antes mesmo do aniversariante. Jonas rasgou o papel com avidez, revelando uma caixa cinza, onde repousava um grande boneco do Batman. “Um boneco de plástico”, pensou André, aliviado e feliz. Jonas jogou-o de lado, assim como fez com os outros, e prostrou-se para esperar o próximo. “O melhor presente” ecoava na cabeça de André.
                Ele começou a levantar-se, orgulhoso, mas antes que completasse o movimento, a mãe do Jonas, Dona Cecília, puxou não se sabe de onde, uma grande e pesada caixa verde, que refletia as luzes com um brilho quase vivo.
                — Minha vez — foi tudo o que ela disse.
                Todos esticaram os pescoços para frente, a fim de descobrir o que guardava aquela caixa. André continuou em pé, paralisado. O brilho nos olhos de Jonas ficou quase tão forte quanto o Sol quando ele abriu a caixa. Retirou de dentro dela, para admiração de todos, e horror de André, um videogame de última geração que mal havia chegado às lojas. “O melhor presente”, repetiu André, não mais se referindo ao seu, mas ao de Dona Cecília. O aniversariante ficou encantado, extasiado, e não parecia enxergar mais ninguém, nem a mãe, a qual se esqueceu de agradecer. Incrédulo, André andou lenta e pesadamente até Jonas, que só percebeu sua chegada depois de um longo tempo, irritado. André entregou debilmente seu presente, que Jonas arrancou de sua mão e atirou de lado, sem nem dar-se o trabalho de abrir, e voltou sua atenção para o videogame, esquecendo-se do resto do mundo. Todos caíram em cima de Jonas, que protegia o videogame com ferocidade. Todos menos André, que permaneceu sentado, calado e sozinho. Cantaram parabéns e se encheram de bolo. Todos menos André, que não tocou num brigadeiro. Ele foi o primeiro a ir embora, saindo despercebido, a não ser pela empregada, que lhe abriu o portão com a mesma frieza e indiferença de antes.
                No dia seguinte, na escola, não se falava em outra coisa a não ser o novo videogame do Jonas. Nada se falou do presente de André. Durante a aula de português, Jonas pediu a André que o ajudasse com uma questão sobre acentuação. Foram as únicas palavras que trocaram neste dia. André ajudou, mas o fez errar uma questão de propósito, talvez duas. Semanas se passaram sem que nada mudasse no seu cotidiano, até que Thiago chegou com notícias sobre o presente de André:
                — O Zica me contou que o Jonas contou para ele que Dona Cecília, assim que abriu o presente que você deu, achou-o tão horroroso que o jogou fora. Mas o Jonas nem chegou a ver o que tinha no pacote. O que era?
                — Um quebra-cabeça.

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