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sexta-feira, 19 de outubro de 2012

DOCE ESCURIDÃO - parte 1


   Um dia desses, arrumando meu quarto, encontrei uns livrinhos infantis que eu ganhei quando criança. Entre eles estava João e Maria, meu conto de fadas favorito. O que mais me encanta nessa história é fato de duas crianças — irmãs, o que só dificulta as coisas — se unirem para sobreviverem num ambiente hostil e assustador. Eles não precisam da ajuda de fadas ou coisas do tipo, simplesmente encaram os desafios e dificuldades que encontram no caminho, não importa se é uma floresta sombria ou uma bruxa filha da p... É por isso que decidi escrever uma nova versão dessa história, mostrando a visão que eu — agora um pouco mais crescidinho — tenho deste “conto de fadas” sem fadas.

   A narrativa me dominou, e as coisas saíram de controle. Irei posta-la dividida em 3 partes, e espero, do fundo do coração, que ela consiga ser tão boa quanto o conto original.

            Era uma vez...



 ECOS NA NOITE

Sophie abriu os olhos assustada. Sua respiração estava pesada, o corpo coberto de suor, e o coração palpitava freneticamente, retumbando em seu peito. O silencio inundava a noite, envolvendo a garota num absoluto vazio.  Estrelas espreitavam-na por entre as altas árvores. Gotas de luz num mar de escuridão. Tentando se acalmar, ela questionou-se o que a havia acordado. Talvez tivesse sido apenas mais um dos sonhos que vinha  tendo desde o que aconteceu na aldeia. Era frequente acordar no meio da noite chorando, e até gritando; mas dessa vez não havia lágrimas em seu rosto, e a paz reinava na noite escura e fria, até que um som chamou sua atenção, o som de folhas sendo pisadas, e um vulto passou ao seu lado. Ela ergueu-se com um salto, agarrando o punhal que carregava consigo, e apontando-o para todos os lados.
                — Fique quieta — disse um sussurro vindo com o vento. Ela abaixou a mão e caminhou em direção a voz, cautelosa. O irmão estava encostado numa árvore, olhando para a mata escura.
                — O que houve? — ela perguntou quando o alcançou.
                — Ouvi alguma coisa — sua voz era quase inaudível.
                Os dois quase não respiravam, esperando escutar ou ver algo, ficando assim durante um longo tempo, e quando já estavam perdendo as esperanças, um ruído metálico chegou aos seus ouvidos, sutil como uma brisa. Os irmãos se olharam, ela assustada, ele pálido, então Kevin saiu de detrás da árvore e começou a caminhar em direção ao som, cauteloso. A irmã olhou-o aterrorizada e incrédula, e, controlando-se para não gritar, disse:
                — O que você vai fazer?
                — Descobrir de onde vem esse som — Kevin respondeu, sem olhar para trás.
                — Isso é loucura — rebatou ela, com a voz esganiçada.
                O irmão não falou mais nada, apenas continuou andando. Sophie olhou em volta, para a escuridão que a cercava, saltou de detrás da árvore e correu atrás dele, fazendo muito barulho. “Onde você pensa que vai?” ele perguntou virando-se para ela, irritado.
                — Vou com você.
                — Não, não vai. Você vai ficar aqui e me esperar — Kevin disse, voltando a andar.
                — Não vou ficar aqui sozinha — ela disse, agarrando o braço do irmão.
                Ele encarou-a com olhos furiosos, iluminados pela fraca luz das estrelas, e disse, apontando o dedo para o seu rosto:
                — Se você fizer algum barulho, por menor que seja, eu te mato.
                — Não mata não.
                Eles caminharam por sobre o chão da floresta como duas sombras, sem fazer nenhum ruído. O barulho metálico voltou a reverberar por entre as árvores, mais alto do que antes. Chegaram a uma pequena colina, e Kevin subiu na frente, agachado, agarrando-se a raízes e pedras; Sophie veio logo atrás, seguindo o rastro do irmão. À medida que subiam, outros sons chegavam aos seus ouvidos: passos, o relinchar de cavalos, vozes, gargalhadas. Quando alcançaram o topo do morro ficaram encolhidos atrás de um arbusto. Esticando a vista para baixo, depararam-se com um acampamento. Uma fogueira ardia no centro dele, derramando sua luz bruxuleante e alaranjada sobre tendas rústicas, cavalos e carroças. Alguns homens bebiam e riam em torno do fogo, usando mantos de pele e carregando espadas na cintura. Kevin e a irmã ficaram paralisados olhando para os estranhos em torno da fogueira, até que alguma coisa no limite do acampamento chamou a atenção do garoto. Ele apertou os olhos, focando numa carroça que não parecia ter nada de diferente das outras, mas... ele enxergou uma pálida mão agarrada as suas grades, e depois outra. Kevin forçou ainda mais a vista, então percebeu que eram pessoas que estavam dentro dela. Embora não pudesse distinguir os rostos envoltos em sombras, podia imaginar quem eram.
                — São eles — disse uma voz tremula ao seu lado.
                Ele virou-se para o lado e olhou para a irmã. Ela estava pálida e com os olhos vidrados, agarrando-se com força aos galhos do arbusto. Kevin pegou a mão dela e arrastou-se para trás, procurando ser o mais silencioso possível, mas, agora, sua respiração lhe parecia ser tão sonora quanto um trovão. Os dois esgueiraram-se pelas árvores, caminhando às cegas por entre troncos e raízes. Antes que percebessem, já estavam correndo pela floresta afora, fugindo do acampamento e dos homens que nele estavam. Galhos baixos aranhavam seus rostos, e pedras soltas os ameaçavam com tropeções, mas eles não paravam. Por mais tortuoso que parecesse o caminho, eles não podiam parar.
                Lágrimas corriam pelo rosto de Sophie, derramando-se sobre as folhas em decomposição. Imagens da aldeia em chamas voltaram a sua cabeça, e ela quase podia sentir o cheiro de madeira e carne queimando. A garota já não escutava o som de seus passos, nem dos galhos quebrando sob os seus pés; o único som que reverberava em sua cabeça eram os gritos da mãe, gritos de terror... e as gargalhadas. Sophie achava que nunca conseguiria esquecer aquelas gargalhadas. Gargalhadas diabólicas, de um prazer sádico. Provavelmente sua mãe era uma das prisioneiras dos bárbaros agora, ou poderia ter tido o mesmo destino de seu pai. Ele havia lutado para defender a aldeia, mas eles o pegaram e... a fogueira...
                Ela emergiu de suas lembranças com o irmão balançando seu ombro. Sophie estava ajoelhada no meio da estrada por onde tinham fugido da aldeia, com as mãos sobre a terra nua, e uma poça de vômito na sua frente. Sua respiração estava irregular, o peito queimava, e um gosto amargo fazia-se presente em sua boca. Ela ergueu a cabeça para olhar o irmão. Ele carregava o machado que pegou antes de fugir da aldeia. Havia medo em seus olhos, e lágrimas, que se negavam a correr sobre sua pele pálida.
                — Não podemos ficar aqui. Eles vão nos encontrar. Eles têm cavalos. Precisamos sair da estrada. Precisamos nos afastar o máximo possível. Vamos — Kevin disse, arfando.
                Sophie se levantou, e limpou a boca com as costas da mão. Os dois caminharam juntos em direção à floresta fechada do outro lado da estrada. Pararam na beira dela, deram as mãos e adentraram-na, sentindo o cheiro das folhas mortas e a total escuridão rodeando-os.


(continua)

3 comentários:

Claudio Chamun disse...

Não demora muito para postar a continuação, Ok? rss

Muito bom.

www.cchamun.blogspot.com.br
Histórias, estórias e outras polêmicas

Pedro Lourenço disse...

Pode deixar, Claudio. A segunda parte sai ainda esta semana.

Jefferson Reis disse...

Gostei muito, adoro releituras.