Peguei a maior toalha que encontrei e joguei tudo dentro. Eram coisas que eu queria, coisas que deixei de querer, coisas que nem lembrava mais que queria. Enrolei tudo numa trouxa disforme e dei o nó mais forte que minha fraca determinação me permitia dar. Joguei o embrulho improvisado sobre as costas. Arquearam-se. Doeram. Caí. Eram toneladas de sonhos gelados que pertenciam a alguém que vivia dentro de mim. Quando cheguei, ele partiu. Levantei, e deixei a trouxa pelo chão mesmo, jogada de qualquer jeito. Não eram pertences meus. Não mais. O dono que cuidasse deles.
Saí dali – seja lá onde fosse “ali” – de mãos vazias e coluna ereta. O que eu precisasse encontraria pelo caminho. Alguns grãos de sonhos. Um par de esperanças novas. Um novo amor que coubesse em mim, mas que ainda ficasse um pouco folgado. Nunca gostei de apertos. O que eu precisasse encontraria pelo caminho.
Eu estava caminhando antes, numa trilha absolutamente reta numa planície. Trilha concretada e plana. Planície concretada e plana. E cinza. De manhã era quente e seco. De noite ventava um vento malcheiroso, era frio e ainda mais seco. Continuei porque achava que aquele era o caminho mais curto para o grande círculo luminoso no céu. Mas descobri, depois de nascerem calos nos calos dos meus pés, que não havia como chegar lá. Agora peguei um caminho cheio de curvas, num vale orvalhado. Árvores desconhecidas crescem por todos os lados. Não há trilhas. Preciso descobrir meu próprio caminho. Enquanto faço isso topo com flores de todos os tons de todas as cores. Ouço cantos e assobios sobre minha cabeça. Nunca consegui enxergar esses cantores e assobiadores, mas qualquer dia desses subirei em uma das árvores e os pedirei que me ensinem a cantar. Também preciso cruzar rios e riachos. Para isso tiro os sapatos e atravesso devagar, sentindo a água correr entre meus dedos, sabendo que ela corre junto com o mundo. Subo morros, montes e montanhas. E, deuses, como é difícil. Vou escalando e ganhando arranhões, cicatrizes e outras dores, mas em algum momento chego ao topo. O grande círculo luminoso está mais perto do que nunca. Choro sempre que o vejo de perto. Sento em alguma pedra e converso com ele durante horas. Ele nunca responde, mas qualquer dia desses subirei até ele e pedirei que me ensine a brilhar. Porém ainda não é o momento. Junto as poucas e preciosas coisas que achei até agora e sigo meu caminho, descendo o morro, monte ou montanha a toda velocidade, de olhos bem fechados, com medo, mas sem nunca parar.
Mas não vou mentir, não pra você: ainda olho pra trás de vez em quando. Ainda posso avistar a planície ao longe. Reconheço, com dificuldade, os contornos de antigos companheiros que insistem em seguir por ela. Não os julgo. Só estão seguindo o caminho que mandaram que seguissem. Eu que fui o desajustado que desistiu da segurança da planície. E olhe só pra mim agora, cheio de arranhões e cicatrizes. Eu, e apenas eu, sou culpado por tudo isso. Culpado pelas marcas doloridas espalhadas por meu corpo. Culpado pelo céu rendado que vejo através das copas das árvores. Culpado pelos pés constantemente molhados. Culpado por não sentir mais culpa. Culpado por sentar na grama e rir sozinho, pensando que nunca estive tão feliz por ser culpado de tantas coisas.
segunda-feira, 1 de dezembro de 2014
quarta-feira, 9 de abril de 2014
COLUNA SOCIAL
Família Silva conta história de tragédias
familiares em exposição
Na
próxima sexta-feira será inaugurada, sob o viaduto Tancredo Neves, a exposição
“Silvas sós”. A mostra conta a trágica história da família mais populosa e
miserável do Brasil. Maria José da Silva, dona de casa, negra, evangélica, mãe
solteira e curadora da exposição, conta as novidades: “A gente vai poder ver de
perto um monte de noiado fumando crack, de verdade. Também vai ter o parto
coletivo. Cinquenta rapariguinhas de 13 anos vão parir lá, ao vivo. Os pais das
criança vão tá tudo se drogando e roubando os convidado. E o ponto alto da
coisa vai ser a repressão dos policiais aos favelado. Vai ter abuso de poder,
agressão gratuita e muito mais. Três mortes, no mínimo, estão programadas para
acontecer. Um dos defuntos vai ser meu filho, Weslley Silva, de 12 anos. Ele é
aviãozinho do tráfico.” A mostra conta com direção artística de Sônia Abrão e
Datena. O buffet fica a
cargo de Selma do espetinho. Sem data para terminar, a exposição também pode
ser conferida em todas as periferias brasileiras.
Fotos do ensaio Simulacrum Praecipitii, de Alessio Ortu.
*Este texto é ficcional.
segunda-feira, 31 de março de 2014
LIVE AND LET DIE
O
que venho propor aqui é um exercício reflexivo, sustentando por uma pergunta
bastante simples: e se você morresse hoje?
“Eu
morreria, ué!”
Sim,
mas seus sonhos, você conseguiu realizar? Você disse “eu te amo” para a pessoa
certa? Você fez tudo que queria fazer? Você partiria desta vida feliz?
Perguntas
simples, respostas não tão simples assim. Questões para se pensar debaixo do
chuveiro, ou com a cabeça sobre o travesseiro. Na ficção, os fins das histórias
trazem as respostas que buscamos, e na vida real não é diferente. Encare o dia
de hoje como seu fim, e, quem sabe, algumas
coisas se tornem mais claras.
Eu?
Bem, ainda tenho muito que viver. Mal comecei a sonhar meus muitos sonhos. Disse
“eu te amo” com frequência, do meu jeito,
para uma quantidade considerável de pessoas. Calma, não sou um cara promíscuo. Refiro-me
aos meus amigos, amigas e indefinidos. Eles são a única coisa valiosa que
tenho, e não preciso de mais nada para ser feliz. Não fiz tudo o que queria
fazer, mas fiz o que deu, um pouco a cada dia. E sim, eu morreria feliz, mais
feliz do que juguei um dia ser possível. Pobre, desempregado, encalhado e mal
vestido, mas escandalosamente feliz.
Se eu
morresse hoje, muitos ficariam fazendo fofoquinhas pelo Facebook e WathsApp
sobre a causa da minha morte. Alguns chorariam. Poucos sorririam, lembrando-se
de qualquer bom momento que tenham passado ao meu lado. Cremem meu corpo, e
guardem as cinzas até o próximo carnaval, para usar como confete. Façam uma “cerimônia”
de despedida legal, animada, bem humorada e criativa. Sem drama, por favor. Sempre
fui feliz e pouco convencional, então não há porque meu funeral ter cara de
funeral. Se possível, façam um vídeo de homenagem bacana, ao som de qualquer
música do Imagine Dragons, de preferência. Se quiserem insistir em usar uma
música triste, sugiro “I Raise My Cup to Him”, da Anaïs Mitchell. Não usem “Firework”.
É sério. Não é só porque sou fã da Katy Perry que vou querer essa palhaçada na minha despedida. Por fim, desejo ser lembrado como um puta cara bacana, inteligente
e nem um pouco convencido. Vocês podem fazer isso por mim?
Ótimo.
Como
eu já disse lá em cima, ainda tenho muito que viver. Por este motivo, termino o
texto por aqui, e deixo a sugestão: planeje seu próprio funeral. É uma experiência
extremamente libertadora e esclarecedora. Mas não dê mais importância para a
morte do que dá para a vida. Um quarto escuro é apenas um quarto escuro. O fim
da história é apenas o fim da história.
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