Não havia nuvens no céu. O Sol,
imperioso, ameaçava transformar em pó qualquer coisa que se aventurasse sob
suas labaredas. Toda a abóbada celeste era de um azul incandescente, se é que
este tom existe. André andava cobrindo os olhos para não cegar-se com os raios
do Sol, e, eventualmente, prendendo a respiração para proteger-se da fumaça dos
carros e da poeira que vinha em ondas. O presente balançava teimosamente na
sacola, e o garoto evitava pensar nos estragos que todas aquelas oscilações
poderiam provocar ao delicado artefato. “O melhor presente” ele entoava como um
mantra. “O melhor presente”. Encontrou-o numa lojinha do centro, escondida no
terceiro andar de um prédio encardido. Havia juntado a suas economias de meses;
queria comprar um presente que chamasse a atenção de todos. Já podia até ver os
sorrisos de admiração estampados nos rostos dos amigos. Ele sabia que Jonas
gostava de animes e RPG. Procurou alguma peça condizente com os gostos do
aniversariante. Depois de profunda reflexão, escolheu a estatueta de um ogro,
ou quase um, de um palmo de altura. Ele era marrom-esverdeado, e trazia uma
armadura de couro e ferro, ornada com diminutos crânios e espículas. Da cabeça brotavam
dois chifres enrugados e amarelados e da face o mais puro ódio. Mas a parte
mais espantosa da figura não era nenhum chifre afiado ou olhar furioso, era, na
verdade, um machado de guerra que carregava na sua mão direita, forjado em
algum metal resplandecente, que lançava um espectro de cores sobre o balcão da
loja. Era quase do tamanho da criatura, e sua lâmina parecia ser realmente
capaz de arrancar a cabeça, não de um ser humano, mas de um rato ou lagartixa,
talvez. A fera havia sido retratada em posição de ataque, com a arma
projetando-se a sua frente, o que o tornava ainda mais assustador. A vendedora
disse que se chamava Grinzun; que era o segundo guardião do sétimo portão do
quinto nível de um game cujo nome André jamais lembrou. Ela também disse que
era importado, e devia ser mesmo, pois trazia “MADE IN TAIWAN” gravado na sua
base. Ele não sabia onde ficava Taiwan, mas se vinha de lá, realmente era
importado. Quando perguntou o preço, a vendedora esboçou um sorriso e olhou-o
de cima a baixo, como que para verificar se ele era digno (ou capaz) de comprar
aquela “obra de arte”.
—
Noventa reais — saiu seca e placidamente de sua boca com piercing.
André
imediatamente tirou os olhos do machado prateado e levantou-os para a
vendedora, para verificar se era algum tipo de piada, mas tudo o que ela
demonstrava era um ar de dúvida na sua empoada face. Convencido de que não era
uma brincadeira, André voltou os olhos para a estatueta. “Mas não passa de um
boneco”, falou uma voz desdenhosa e incrédula dentro de si. Ele almejou dar um
passo para traz, mas o olhar da fera, da vendedora, e agora também de um jovem
que lia um gibi perto da janela, estavam cravados nele. “O melhor presente”,
ele repetiu, como que para lembrar a si mesmo o proposito de estar ali. Mas uma
vez sua vista vagou para a vendedora, que já começava a achar graça na cara
assustada do garoto. O rapaz no canto assistia tudo aquilo curioso, e nem dava
mais atenção ao gibi, que formava orelhas em seu colo. André olhou mais uma vez
para o “guardião do portão”. Ele apontava o machado para o seu coração, e
trazia o olhar de quem pode ler todos os seus segredos e não gosta nem um pouco
deles.
—
Vocês embrulham para presente?
A
ideia de barganhar nem passou pela sua cabeça, tamanha foi a confusão mental
que o tomou naquele momento. A loja não embrulhava para presente. Ele mesmo
embrulhou-o com um pedaço de papel azul-marinho com listras cinza que achou
entre as velharias do armário, e fita durex.
Agora o presente balançava na sacola, com o embrulho amaçado e a fita adesiva
torta. “O melhor presente”. Não era mais
um desejo vago, era a mais real das certezas. “O melhor presente”. O ônibus
demorou, e quando chegou, chegou cheio. O ar lá dentro cheirava a suor, fumaça
e desodorante vagabundo. Uma senhora simpática de uns sessenta anos ofereceu-se
para segurar o pacote.
—
Não, obrigado — ele respondeu sem pensar duas vezes. Jamais deixaria um
estranho colocar as mãos naquele “tesouro”, nem que fosse a vovozinha da
Chapeuzinho Vermelho. O ônibus chegou ao seu destino, e depois de alguns
pedidos de passagem e empurrões, mais para abrir caminho para o presente do que
para ele próprio, finalmente conseguiu descer. O Sol ali não era menos
impiedoso do que o de antes, mas o de agora parecia parabeniza-lo pelo
presente, derramando sua luz pela ampla rua arborizada. Até o azul do céu havia
deixado de ser incandescente (esse tom existe?). Ele marchou – sim, marchou! –
rumo a casa do aniversariante, na rua Abílio Dias Filho, da qual nunca tinha
ouvido falar. Jamais havia ido a casa do Jonas, então ficou espreitando o
número das casas. O convite dizia que era a 908. A residência a sua direita era
a 137. Nunca fora grande amigo do Jonas. Garoto alto, forte e bonito, ele fazia
parte da equipe de vôlei e era muito popular na escola. Raramente trocava uma
palavra com André, a não ser para perguntar as horas ou tirar alguma dúvida das
questões de matemática, ou história, ou inglês… na verdade pensar não era o seu
forte. “Então por que você vai a essa festa, se ele não é seu amigo?” perguntou
sua mãe depois de mostrar-lhe o convite. “Porque ele me convidou”, respondeu.
Na verdade ele havia convidado toda a turma, mas essa parte poderia ser
omitida. “Por que dar-lhe um presente tão caro? Dinheiro não nasce em árvore.
Na minha época, eu jamais poderia dar trinta reais num brinquedo...” e assim
sua mãe continuou o discurso de como as coisas eram difíceis no tempo dela e blá, blá, blá. Ela não sabia o
verdadeiro preço do presente, e nem precisava saber. Tudo o que importava era
que ele lhe daria o melhor presente e tornar-se-ia seu novo amigo de infância, e, quem sabe, um dia,
talvez, seria tão popular quanto ele.
Ele
chegou a casa. Era grande e de dois andares. Tinha as paredes pintadas de
branco e um jardim com flores queimadas pelo sol cercava-a de todos os lados.
Tocou a campainha. Uma jovem de pele escura veio abrir o portão. Não deu mais
do que uma breve espreitada na sacola, então o deixou entrar, sem dizer uma
palavra nem lhe lançar o mais sutil sorriso. Ele andou em direção à porta da
casa, que estava aberta. Lá dentro encontrou alguns de seus amigos, e tantos
outros que nunca havia visto. O ar no interior da casa era morno e pesado, e
cheirava a eucalipto. A mesa dos doces estava num canto, intocada, com um grande
bolo com granulados azuis e verdes cobrindo-o. Tinha quadros espalhados por
todos os lados: pinturas estranhas nas paredes, fotos sobre os móveis e um
uniforme de vôlei na parede oposta a porta, ladeado por medalhas de todos o
tamanhos e formatos, sendo a maioria douradas, e algumas prateadas. O que mais
chamava a atenção era televisão, daquelas fininhas, e enorme. André, na sua
cândida inocência, julgou que tivesse mais de cem polegadas.
Lançando
o olhar mais detidamente pela sala, percebeu que muitos dos seus colegas de escola
que Jonas havia convidado não estavam ali. Encontrou Thiago, seu melhor amigo,
sentado numa cadeira perto de um vaso de flores purpuras, com uma expressão
acuada. Sentou-se ao seu lado. Sem nem olhar para ele, Thiago falou:
—
Ainda bem que você chegou. Pensei que não vinha mais. Ele vai começar a abrir
os presentes.
Institivamente
ele olhou para o colo do amigo, onde estava um grande embrulho de papel
vermelho com bolas douradas. O tamanho assustou-o um pouco, mas depois se
convenceu de que não devia ser nada demais. Posteriormente correu a vista pela
sala, a procura do aniversariante, e encontrou-o sentado num grande sofá
vermelho, ao lado da mãe. Ele estava imaculadamente vestido e penteado, só
sorrisos, enquanto a mãe não tinha olhos para ninguém, além dele. Um garoto de
camisa verde que ele não conhecia foi o primeiro entregar-lhe o presente.
Depois de rasgar rapidamente o embrulho, Jonas tirou de dentro de uma caixa um
carrinho azul e amarelo. Depois de agradecer polidamente, jogou-o de lado. E
assim se sucedeu por um bom tempo. Recebia o presente. Desembrulhava-o.
Agradecia. Jogava-o de lavo. Ele ganhou mais um carrinho, três bolas de vôlei,
muitas roupas, alguns bonecos e um quebra-cabeça, que ele visivelmente
desgostou. Então chegou a vez do Thiago. Ele levantou-se e andou assustado em
direção ao aniversariante, que se sentava como um rei no seu trono vermelho,
rodeado de presentes. Thiago entregou tremendo o pacote, que Jonas tirou de
suas mãos sem cerimônia. A curiosidade tomava conta dos pensamentos de André,
que esticava o pescoço na esperança de conseguir enxergar o conteúdo do
embrulho antes mesmo do aniversariante. Jonas rasgou o papel com avidez, revelando
uma caixa cinza, onde repousava um grande boneco do Batman. “Um boneco de
plástico”, pensou André, aliviado e feliz. Jonas jogou-o de lado, assim como
fez com os outros, e prostrou-se para esperar o próximo. “O melhor presente”
ecoava na cabeça de André.
Ele
começou a levantar-se, orgulhoso, mas antes que completasse o movimento, a mãe
do Jonas, Dona Cecília, puxou não se sabe de onde, uma grande e pesada caixa
verde, que refletia as luzes com um brilho quase vivo.
—
Minha vez — foi tudo o que ela disse.
Todos
esticaram os pescoços para frente, a fim de descobrir o que guardava aquela
caixa. André continuou em pé, paralisado. O brilho nos olhos de Jonas ficou quase tão forte quanto o Sol quando ele abriu a caixa. Retirou de dentro dela,
para admiração de todos, e horror de André, um videogame de última geração que mal havia chegado às lojas. “O
melhor presente”, repetiu André, não mais se referindo ao seu, mas ao de Dona
Cecília. O aniversariante ficou encantado, extasiado, e não parecia enxergar
mais ninguém, nem a mãe, a qual se esqueceu de agradecer. Incrédulo, André
andou lenta e pesadamente até Jonas, que só percebeu sua chegada depois de um
longo tempo, irritado. André entregou debilmente seu presente, que Jonas
arrancou de sua mão e atirou de lado, sem nem dar-se o trabalho de abrir, e
voltou sua atenção para o videogame, esquecendo-se do resto do mundo. Todos
caíram em cima de Jonas, que protegia o videogame com ferocidade. Todos menos
André, que permaneceu sentado, calado e sozinho. Cantaram parabéns e se
encheram de bolo. Todos menos André, que não tocou num brigadeiro. Ele foi o
primeiro a ir embora, saindo despercebido, a não ser pela empregada, que lhe
abriu o portão com a mesma frieza e indiferença de antes.
No
dia seguinte, na escola, não se falava em outra coisa a não ser o novo videogame
do Jonas. Nada se falou do presente de André. Durante a aula de português,
Jonas pediu a André que o ajudasse com uma questão sobre acentuação. Foram as
únicas palavras que trocaram neste dia. André ajudou, mas o fez errar uma
questão de propósito, talvez duas. Semanas se passaram sem que nada mudasse no
seu cotidiano, até que Thiago chegou com notícias sobre o presente de André:
—
O Zica me contou que o Jonas contou para ele que Dona Cecília, assim que abriu
o presente que você deu, achou-o tão horroroso que o jogou fora. Mas o Jonas
nem chegou a ver o que tinha no pacote. O que era?
—
Um quebra-cabeça.