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sábado, 29 de setembro de 2012

O COLECIONADOR


  


Ele chegou derrubando todas as paredes
Enchendo o quarto de luz
Chegou pondo fim a tempestade
E mostrando que há vida além dos muros

Ele pegou minha mão e me puxou para cima
Apontando rostos, e dizendo
“Ela será sua amiga”
“Ele lhe abraçará”
“Você será, enfim, feliz”

Ele dominou cada centímetro da minha vida
Para depois troca-la por meia dúzia de lágrimas
Ele me jogou no meio das outras marionetes
E nossos fios se enroscaram
Ninguém mais sabia onde terminava uma história
e começava outra.
Garoto, foi a última vez que você brincou de Deus

Já conheço todas as suas máscaras
Seu jeito de bom moço
Já ouvi falar de todos os seus feitos de herói
E quer saber de uma coisa?
Não acredito em nenhum deles

Por que você adora fazer tempestades em copos d’água?
Mergulhe em quantos abismos quiser
Mas não arraste os inocentes contigo.
Garoto, foi a última vez que você brincou de Deus

Agora você está jogado na lama
E ao meu sinal choverão pedras
O que você fará, garoto?
Não, você não pode correr
Não adianta prometer-me as estrelas
Essa máscara já queima na fogueira

Sua derrota é meu talismã
E agora eu caminho sobre os escombros do seu teatro.
Garoto, foi a última vez que você brincou de Deus

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

CENA VII



                Abrem-se as cortinas. O cenário se resume a uma árvore seca e sem vida banhada por uma sutil luz dourada, que tenta imitar o sol, sua beleza e ferocidade. Entra Maria aos prantos e correndo, trajada e maquiada ao estilo armorial. Ela joga-se de joelhos diante da árvore, levando as mãos fechadas em concha ao coração. A atriz olha para cima, para os ramos da árvore, depois desce a vista até seu tronco e precipita-se sobre ele, abraçando-o. Abre a boca e diz em altos brados:
                — Árvore, tu que é minha amiga, acuda-me! Ajude-me Dona Árvore.
                — Por que choras menina? Respira e diz o que te aconteceu — responde uma voz sem dono.
                — É meu pai, Dona Árvore. Ele quer vender-me a um homem velho e feio, a que todos chamam “Coronel Midasino”. Dizem que rios de dinheiro correm em suas fazendas, e que os dentes já lhe nasceram de ouro, e até que tem casa lá para as bandas do mar.
                ­— Mas por que este coronel quer lhe comprar? Para fazer companhia a suas cabras não há de ser.
                — Antes fosse. Ele quer casar comigo. Quer me fazer sua esposa de papel passado — responde, com voz branda e suave.
                — E por que você não casa?
                — OXE! Quero não, Dona Árvore! — rebate Maria irritada, levantando-se de um pulo e saltando para longe da árvore — Nasci pra casar com homem velho e feio não. Dona Genoveva disse que o tal do coronel já tem mais de 200 anos, e que chegou aqui antes mesmo de tudo virar sertão, quando "inda" era mar.
                — Não acredite em tudo que o povo diz, menina. Essa gente daqui gosta de inventar história. Por que você não diz a seu pai que não quer casar com o coronel? Talvez ele...
                — Já disse, Dona Árvore! Já disse! — esbraveja a atriz, voltando a chorar — Mas ele diz que criança não tem querer! Diz que me casa com o Coronel Midasino nem que seja amarrada! Ajude-me Dona Árvore! Eu imploro.
                — Pobre menina, como poderei eu te ajudar se não passo de uma árvore velha e torta? — responde a voz, em tom doce e melodioso.
                — Me leve embora daqui Dona Árvore, para um lugar onde meu pai não me encontre — suplica Maria, indo para frente do palco e dando as costas à árvore.
                — Como poderia eu te levar, se minhas raízes me prendem a este chão seco e duro?
                — Então me esconda embaixo das tuas raízes, dentro da terra.
                — Bicho homem não vive dentro da terra, tire essa ideia da cabeça. Quando tua gente desce ao chão é pra não mais voltar.
                — Então me leve para baixo do chão, Dona Árvore! Acho esse melhor fim do que casar com o coronel.
                — Deixe de asneiras! — o silêncio prolonga-se, sendo quebrado apenas pelos suspiros da atriz — Menina Maria, tenho um segredo a lhe contar. Não lhe contei antes porque... bem, não sei porque não contei antes, mas agora vou contar.
                — Conte logo, Dona Árvore, que sua demora tá me deixando avexada.
                — Não sou árvore.
                — Não é árvore? — Maria vira-se — Como não, se tem cara de árvore.
                — Não sou árvore.
                — Como não, se tem cheiro de árvore — afirma a menina, cheirando o tronco.
                — Não sou árvore.
                — Como não, se até o gosto é de árvore — questiona Maria, lambendo a casca da árvore.
                — O que tu vê, sente, cheira e... e prova, é árvore, mas eu não sou árvore.
— Agora entendo ainda menos do que antes.
— Não sou árvore, menina Maria, sou pássaro, desses que voam e fazem ninho — esclarece um passarinho de madeira, que sai de um buraco no tronco. — Quando tu vieste da primeira vez, assustada e cheia de verbos, eu dormia aqui neste buraco. Eu te escutei e te aconselhei, mas tu pensaste que era a árvore que te falava, e não “eu”. Voltaste, e passas-te a me chamar de “Dona Árvore”, então te deixei pensar que era a árvore que te respondia. Mas sempre fui pássaro, e sempre hei de ser.
— Que susto Dona... Seu Pássaro, até pensei que fosse coisa mais séria.
— Tu não ficaste arretada comigo?
— Oxe! Por que haveria de ficar se você não fez nada de mal pra mim? Não importa se é planta ou bicho, eu não confio é em gente. Mas, Seu Pássaro, por que inventou de contar isso pra mim agora?
— Por que, talvez, assim eu conseguiria resolver o seu problema.
— Como, Seu Pássaro? Como?! — pergunta Maria, eufórica.
— Te levando pelo céu comigo, pois, lá no alto, teu pai não há de nos encontrar.
A menina fica subitamente abatida, de ombros caídos, e fala, com voz triste e apática:
— Como poderei ir contigo, Senhor Pássaro, se não posso voar?
— Isso não é problema.
— Como não, se sou gente, e gente não tem asa, e quem não tem asas não voa.
— Isso não é problema, menina Maria, pois sou um pássaro mágico, e tenho o poder de transformar quem quiser em ave, como eu.
Neste momento um grande sorriso estampa-se no rosto da atriz e de todo o público.
— Então me transforme, Senhor Pássaro! Me transforme em passarinho, como o senhor.
— Tem certeza disso, menina Maria? Depois de virar pássaro, nunca mais voltarás a ser gente.
— Tenho certeza sim! Pode me transformar! É melhor ser pássaro do que ser gente, pois bicho pior não há. Dai-me asas, Senhor Pássaro, que assim chegarei mais perto do sol, e o que me prende aqui na terra lá no alto não há de me alcançar.
— Se é verdadeiro teu desejo, então te darei asas, penas e um bico, e assim serás pássaro, como eu.
E depois disso a atriz some num turbilhão de fumaça, ao som de um maracatu qualquer, dando lugar a um passarinho de madeira alva, menor do que o outro. Os dois então abrem suas asas mecânicas e voam sobre o público. Todos aplaudem extasiados. Os atores voltam ao palco e fazem suas mesuras. As luzes se apagam e as cortinas se fecham. Fim do espetáculo.

●●●

A atriz deixa de ser Maria e volta a ser Verônica. Tira o vestido de retalhos coloridos e veste sua calça jeans. Lava o rosto rapidamente para retirar a maquiagem pesada, pega o ordenado do dia com o produtor, se despede de todos e caminha para a saída do teatro. Acende um cigarro no caminho, e sai para a noite fria e escura, sem as luzes douradas. Corre para pegar o ônibus que já chegava ao ponto. Paga a passagem e senta-se no fundo. Reclina a cabeça e cochila enquanto uma das falas da peça volta a sua cabeça. “Quem não tem asas não voa”.  Fim do espetáculo.

domingo, 23 de setembro de 2012

BELA



Ela me seduziu.
Seus olhos sempre opacos;
Seus lábios desdenhosos;
Qual mortal resistiria?
Tudo era encanto.
Ela gargalhava,
e beijava-me enquanto meu coração
batia em suas mãos.
Triste fim da realidade;
Apaixonei-me por uma bruxa.

Foram tantos os perigos e feitiços;
Não havia limites em seus horizontes.
Por mestre ela chamava o homem das sombras;
Ajoelhava; cantava; vibrava;
E a magia lhe brotava como nas fontes.

Eram sempre seus os primeiros brados
diante da desgraça e da miséria humana.
Com sua voz amaldiçoada
arranhava minhas memórias;
E eu lhe entregava
Alma; corpo; mente e vida.

●●●

Certo dia ela mostrou-me
Um homem de vidro.
Ele imitava meus gestos;
Roubava meus sonhos.
Dizia ele que seria rei um dia;
Mas a bruxa desmentia-o;
Cochichava eu meu ouvido:
“Pobre rapaz, não sabe
que desta moldura nunca sairá;
Desconhece o seu futuro;
Esqueceu quem é e onde está.
Ignora que há muitos
maiores e melhores do que ele.
Pobre rapaz, não sabe
que desta moldura nunca sairá”

Enquanto a bruxa dissolvia-se nas sombras,
eu comtemplava o homem de vidro;
Alegre e sorridente no seu mundo particular.
Ainda podia-se ouvir a gargalhada terrível
da minha amada malfeitora;
Como que me lembrando que e a verdade
está do lado de cá da vida.

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

OS OLHOS DA FLOR - parte 3




                O casamento foi em Alvo Campo, pouco tempo depois do funeral do Rei Leon, que morreu enquanto Alejandro estava em Brumário. A Catedral de Santa Maria de Perva estava completamente cheia, e uma incessante tempestade de neve caia do lado de fora, dando um ar cinza e gélido a tudo. O rei, pai de Liz, não pôde ir ao casamento, pois não estava se sentindo muito bem e uma viagem naquela temperatura poderia ser fatal. A princesa estava totalmente desconsolada e nem se dava ao trabalho de esconder as lágrimas que vinham aos borbotões. E todos na catedral pareciam compartilhar da tristeza de Liz, pois não havia riso, gargalhada ou alegria em lugar algum. Todos pareciam padecer junto à princesa. “Era para José estar aqui, no seu lugar” Pensou a princesa olhando para Alejandro. A coroação foi logo após o matrimônio, dando a impressão à Liz de que aquele dia nunca acabaria. Ela queria voltar para casa, reencontrar José e nunca mais se afastar dele. Esses pensamentos a fizeram chorar ainda mais, chamando a atenção de todos os presentes na cerimônia. Alejandro, longe da vista de todos, apertou o braço dela com força e sussurrou no seu ouvido com uma voz tão doce quanto venenosa:
                — Pare de chorar agora.
                — Você está me machucando.
                — Agora — disse ele, apertando ainda mais forte.
                Liz engoliu as lágrimas e permaneceu calada até o fim da cerimônia, quando o arcebispo colocou uma coroa de brilhantes em sua cabeça, que parecia pesar tanto quanto uma montanha. “Eu nunca pedi esta merda, por que tenho que usa-la?” Era o que uma Liz furiosa pensava enquanto eram proferidas as últimas palavras da coroação. Ela e Alejandro saíram da catedral de braços dados, sendo ovacionados pelos presentes, enquanto do lado de fora uma suntuosa carruagem os aguardava em meio à tempestade de neve. Ela entrou rapidamente para proteger-se do vento, enquanto o príncipe — agora rei — veio logo atrás. Mal se fechou a porta, ele começou a falar:
                — Não gostei nem um pouco do seu comportamento na cerimônia.
                — Que comportamento, meu senhor?
                — O seu choro! Você não parou um segundo; parecia que não queria estar lá.
                “E não queria mesmo”.
                — Não foi nada disso meu senhor. É que eu estava pensando no meu pai, eu gostaria muito que ele...
                — Você é minha esposa agora, não há porque ficar chorando o tempo todo. O que os outros vão pensar? Que você é infeliz, que eu lhe trato mal. Não quero que esse comportamento se repita, está entendido?
                — Sim senhor.
                — Vamos, sorria! Por que você nunca sorri? Você é uma rainha agora, deveria estar feliz com isso. Em breve a coroa de Brumário também será nossa. Mostre-se agradecida pelo menos.
                “Sabe onde é que você enfia a sua maldita coroa?”
                — Não é nada meu senhor, é que eu não consigo tirar meu pai da cabeça.
                — Trate de tirar logo. Já estamos chegando ao castelo e daqui a pouco começará o baile. Não quero ver você chorando.
                — Claro senhor.
                E assim continuou a viagem até o castelo, onde o baile transcorreu sem maiores incidentes. Liz se esforçou ao máximo para parecer estar feliz, mas, mesmo assim, Alejandro ainda lançava alguns olhares ameaçadores para ela. Terminada a festa, os dois subiram para os aposentos reais, onde, só quando viu a cama, Liz entendeu que a noite ainda não havia terminado. O terror tomou conta dela, e ela empacou no meio do quarto. Alejandro, percebendo, falou:
                — Não fique com medo, não vou lhe machucar. Agora tire a roupa.
                Liz permaneceu paralisada, olhando para a cama com uma palidez crescente, parecendo não ouvir o que ele falava.
                — Tire-a-roupa.
                Ela continuou parada.
                — Eu mandei tirar a roupa! — gritou ele, perdendo a paciência e jogando-a na cama.
                Quando ela acordou de seu transe e percebeu aqueles dois obscuros olhos fitando-a com fome e ferocidade, entrou em pânico e começou a gritar.
                — Me larga! ME LARGA!
                Era inútil. Alejandro já a dominava e rasgava seu vestido bordado de pedrarias. Ela continuava resistindo, mas o rei estava fora de si, e segurava-a com cada vez mais força.
                — CALA A BOCA! — gritou ele, dando um bofetão no rosto de Liz.
                Ela diminuiu a resistência, embora ainda lutasse com o homem que estava sobre seu corpo. Alejandro tirou a túnica e penetrou-a com força. Ela estava cada vez mais enojada enquanto ele aumentava a velocidade e força das estocadas. Pensava em José, nas noites que havia passado ao seu lado, e amaldiçoava aquele demônio que a havia seduzido com palavras doces. Lágrimas desciam de seus olhos enquanto ele urrava sobre ela, até que ela sentiu o corpo de Alejandro relaxar.
                “Graças a Deus”, ela pensou quando o rei largou-a. Alejandro fitou seu rosto pálido, e desceu os olhos por seu corpo suado e quente, até chegar ao seu ventre. Ele passou a mão entre suas pernas, e olhou para ela. Não achou o que queria. Passou novamente, dessa vez mais fundo e com mais força, e mais uma vez ficou decepcionado. Ele olhou fundo nos olhos de Liz, e com uma frieza calculada perguntou:
                — Onde está o sangue?
                Sangue? Que san... MERDA!
                — Minha ama disse que algumas moças não sangram na sua primeira vez — respondeu Liz, tentando esquivar-se da pergunta.
                — MENTIRA! — trovejou ele, dando uma tapa em seu rosto.
                — Não estou mentindo meu senhor. Minha ama...
                — Você não é mais virgem! — e deu mais uma tapa, com mais força que a anterior. — Eu queria uma noiva casta, e seu pai me entrega você: uma puta! — então ele agarrou seus cabelos e jogou-a ao chão. Liz chorava e gritava por socorro sem parar, com medo do que Alejandro poderia fazer com ela.
                — Com quantos homens você já transou? — perguntou ele, ajoelhando-se ao seu lado e apertando seu pescoço — Dois? Três? O castelo inteiro? Aposto que você deu até para os cavalos.
                — Eu não fiz isso... — respondeu ela, lutando para respirar.
                — Não-minta-para-mim! — disse Alejandro, apertando ainda mais forte. — Eu sabia que você estava escondendo alguma coisa desde o momento em que lhe vi pela primeira vez. Mas você se achava muita esperta com seu pai do lado para protegê-la, não é? Não temia que eu descobrisse, mas quem vai lhe proteger agora?
                Liz sentia sua alma sendo devorada por aqueles olhos demoníacos. Seu corpo estava começando a perder as forças, e tudo o que ela pensava era no sorriso de José. Seu sol. Ela parou de lutar, entregou-se.
                — Eu deveria lhe matar, mas não ficaria bem para um rei matar sua esposa na noite de núpcias — disse ele por fim, soltando seu pescoço. — Você vai dormir aí, no chão, com uma cadela, que é o que você é, e amanhã decido o que vou fazer — ele agarrou a cabeça dela e puxou-a para si, dando-lhe um beijo feroz. — Boa noite, vadia.
                Mas Liz não dormiu aquela noite. Ela permaneceu encolhida no chão em estado de choque; tremendo, chorando e com os olhos vidrados. Tudo o que ela enxergava era o rosto de José sorrindo para ela. Quando ela despertou de seu devaneio, a única coisa que se ouvia no castelo era o som do vento gelado do lado de fora. Ela ergueu-se lentamente por causa das dores que sentia no corpo, e caminhou pelo quarto, sem saber o que fazer. Andou até a cama e ficou olhando Alejandro dormir por um longo tempo. Ele dormia o sono dos justos, como o mais divino dos santos. Quando estava de olhos fechados era a encarnação da beleza, mas quando abria os olhos, aqueles olhos de demônio, era a maldade e perdição em pessoa. Liz caminhou até o baú onde estavam suas coisas, na esperança de encontrar uma saída para a desgraça que com certeza viria. Encontrou apenas roupas, sapatos, joias e mais roupas, até que espetou o dedo numa coisa afiada no fundo do baú. Precisou se conter para não gritar. Enfiou a mão novamente no baú, a procura do objeto pontiagudo, com cuidado. Seus dedos tocaram aquilo que parecia ser marfim, frio e liso. Ela puxou. O que veio em sua mão foi uma adaga de lâmina triangular, polida e afiada. “Quando eu coloquei isso aqui?”. Ela ficou admirando a adaga, que, provavelmente, havia sido presente de algum pretendente seu. Imagens do Salão Verde voltaram à sua cabeça. Todos os homens ali presentes lhe admirando, fazendo promessas. Seu pai dizendo que ela precisava se casar. Ela levantou-se e caminhou em direção à cama. Um rapaz bonito e misterioso vinha andando em sua direção. A adaga estava firme em sua mão direita. “Seus olhos não são como todos dizem” falou o rapaz. Ela parou ao pé da cama. O passeio no jardim. O pedido de casamento sob o olmo. Alejandro dormia placidamente, a encarnação da beleza. O casamento. A coroação. Os apertões. As ameaças. Ela ergueu lentamente a lâmina sobre a cabeça. O que ele fez com ela naquela cama. A surra que lhe deu. A humilhação.
                — Quem vai lhe proteger agora? — sussurrou ela no silêncio da noite, abaixando a adaga com rapidez e perícia contra o peito de Alejandro. Mas parou.
                “Por que você parou, sua idiota? Continue. Mate-o!” Liz tentou, mas não conseguia. “Pense no que ele fez com você. Ele lhe humilhou. Bateu em você. Ele estuprou você” Mas ela não conseguia, por mais que tentasse. “Amanhã ele vai lhe matar. Mate-o antes!”
                Não sou como ele.
                “Mate-o AGORA!”
                Não sou como ele!
                Liz correu com a adaga em direção a própria garganta, mas em vez de cortar seu pescoço, começou a cortar o cabelo aos tufos. “Amanhã ele vai me matar”. Correu até o baú. Foi só aí que ela percebeu que estava nua. Vestiu uma túnica simples. Pegou um manto grosso e uma saia velha. “Se ele não me encontrar, não vai poder me matar”. Foi até uma mesinha no canto do quarto e pegou todos os pães, queijos e frutas que estavam sobre ela e jogou-os dentro da saia que encontrou, fazendo uma trouxa. “Se eu conseguir chegar à Brumário, José irá me ajudar”. Foi até a lareira e pegou um pouco de cinzas e passou em seus braços, rosto e cabelo recém-cortado. Pegou a adaga e guardou na cintura. Saiu do quarto, deixando Alejandro dormindo, mas parou quando viu um archote aceso no corredor. Arrancou-o da parede e voltou ao quarto. Aproximou-se do rei e sussurrou:
                — Pensei melhor. Te vejo no inferno, vadia — e começou a tocar fogo nas cortinas, tapetes, armários, e antes que Alejandro acordasse e percebesse o que estava acontecendo, ela já descia os últimos lances de escada da torre onde ficava o quarto.
                Enquanto os moradores e empregados do castelo corriam apavorados para todos os lados, Liz roubava um cavalo da cocheira e corria em meio aos montes de neve de Alvo Campo, rindo sozinha de Alejandro trancado em seu próprio quarto em chamas.
                — Eu estou sorrindo agora! Está vendo, meu senhor? — gritava ela para o vento, enquanto o castelo ardia em altas labaredas as suas costas.

●●●

                Depois de algumas semanas, Liz chegou à Brumário. Foi um trajeto difícil, onde ela precisou enfrentar a neve, a escuridão, e, quando a comida acabou e não se achava fruta em lugar algum, roubar de algumas casas e plantações que se encontravam pela estrada. Ela esperou anoitecer para poder passar escondida pelos muros do castelo, deixando o cavalo do lado de fora. Já era tarde e tudo estava em total silêncio. Passou em frente às forjas e depósitos, chegando finalmente à cavalariça, onde os cavalos dormiam sem se preocupar com a garota encapuzada que passava entre eles. Ela chegou à porta dos fundos e bateu-a o mais sutil e silenciosamente que conseguiu.
— José, abra. Sou eu. Voltei. — sussurrou Liz na esperança de que ele pudesse escutar.
Mas quem abriu a porta não foi José, e sim um rapaz moreno, alto e musculoso de cabeça raspada. Liz assustou-se.
— Onde está o... o... José?
— Ele não trabalha mais aqui.
O pânico tomou conta de dela.
— O que fizeram com ele? — falou ela, mais alto do que gostaria, mas o rapaz não pareceu perceber o seu temor.
— Ele casou-se e foi plantar roça lá para as bandas de Naugrúvia. Se a senhora não se importa, eu preciso...
— Casou-se? Quando? — perguntou Liz, desnorteada.
— Não faz muitos dias. Assim que a princesa foi embora do castelo (que Deus a tenha) ele arranjou uma noiva não se sabe onde, não se sabe como, e casou-se, saindo quase fugido daqui. Na verdade, era uma mulherzinha estranha; baixinha, tinha os dentes tortos, mas fazer o quê? Nessas coisas de amor não se pode fazer nada.
Esta última parte sobre o amor Liz não escutou, pois já havia dado as costas e caminhava apressada para fora da cavalariça, deixando o cocheiro falando sozinho. Ela saiu dos muros do castelo e subiu no cavalo, que cochilava, e começou a cavalgar como se um exército a perseguisse, sem rumo. O homem que havia jurado nunca esquecê-la, sempre estar ao seu lado, ama-la para sempre, havia casado com outra. O homem que havia sido o responsável pelos melhores momentos da sua vida não a amava mais. Nunca mais iriam se ver. Ela não o culpava, afinal de contas, ela também havia casado, tinha construído uma nova vida — ou quase. Mas eu não tive escolha. Ele não poderia espera-la para sempre, ele precisava viver. Neste momento ela chegou à conclusão de que o destino não tem o menor senso de humor. Liz sabia que nenhum dos dois tinha culpa do que aconteceu, e se algum dia houve amor entre eles, ele ainda devia abitar em algum lugar, mesmo que no quarto frio e úmido da cocheira. Neste momento Liz parou o cavalo no alto de um monte, para contemplar o nascer do sol, que derramava seus raios de luz sobre uma torre em ruínas no fundo de um vale verdejante, rodeada por árvores e lírios. Ao longe se podia ouvir o canto dos pássaros e o som de água corrente.
Quão bela pode ser a tristeza?”


Para Lilian;
minha  princesa, minha flor'

sexta-feira, 14 de setembro de 2012

OS OLHOS DA FLOR - parte 2



               Liz acordou com batidas fortes na porta. Olhou em volta. O quarto suntuosamente decorado estava iluminado pelas pela luz do sol, que era filtrada pelas finas cortinas azuis. Pássaros cantavam em algum lugar distante.  As batidas continuavam.
                — Acorde senhorita. O sol já vai alto e o senhor Rei, seu pai, lhe espera no Salão Verde. Acorde.
                — Já acordei! Vá a meu pai e diga que já desço.
                — A senhorita não deseja que eu lhe ajude a vestir-se?
                — Hoje não ama, obrigada. Desejo ficar sozinha. Pode ir.
— Como desejar, senhorita.
Os ecos da noite anterior ainda ressoavam nos pensamentos de Liz. Ela, que por tanto tempo havia vivido triste e solitária, havia encontrado o amor nos braços de José, e agora tinha que abrir mão de tudo o que havia sentido e vivido. Os dias de sol nos verdejantes campos próximos ao castelo, as aventuras no bosque, as noites de prazer na cabana da cocheira. Os rios, as flores, os beijos, os pássaros, os suspiros, as verdades, a chuva e tantas outras maravilhas haviam permeado a vida e os sonhos de Liz, e agora tudo sumia por causa do reino e da maldita coroa. E se ela não fosse uma princesa, se fosse uma camponesa como José, será que tudo seria diferente? Claro que seria. Eles poderiam viver seu amor sem ninguém para interpor-se a ele. Poderiam ter uma casinha no campo, com flores em volta, e, quem sabe, até um riacho ao fundo. Seus filhos correriam pela casa, brincariam na grama, seriam felizes. Todos seriam. Mas quis o destino o contrário: quis dar a Liz o fardo de carregar uma coroa que ela nunca desejou. Quis encarcera-la num castelo de pedras frias e cinzas, longe dos amores, dos sonhos, da felicidade. Agora ela teria que ir encontrar-se com uma legião de homens estranhos. Teria de ser medida e analisada por eles, como um objeto. Distribuiria mil belos sorrisos, mil tristes mentiras. Escolheria um deles. Um dos homens do salão. Mas o homem que ela amava não estaria no salão; estaria da cavalariça, e dali não sairia jamais.

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Quão bela pode ser a tristeza?” Era o que Liz pensava, parada em frente às portas do Salão Verde. Elas eram enormes e pesadas, forjadas em um metal azulado. Traziam o alto-relevo de uma torre em ruínas, rodeada por flores e árvores. O sol surgia detrás de uma nuvem, derramando seus raios de luz sobre o cenário. Todas as vezes em que a princesa dirigia-se ao salão parava para contemplar suas portas. Ela ficava encantada com a beleza daquela ruína, com aquela torre, que mesmo destruída, podia ser tão maravilhosa. Ela se lembrava de haver perguntado um dia para sua ama onde ficava aquela ruína, mas ela não soube responder. Perguntou ao seu pai, a José, até ao sábio Aliano, mas nenhum soube. Tudo o que se sabia é que aquela torre foi a única coisa que sobrou do primeiro castelo construído em Brumário pelos ancestrais de Liz. Ela acordou de seu devaneio com o barulho das pesadas portas se abrindo, revelando o salão repleto de homens do outro lado. Ela respirou fundo e começou a andar, com os olhos fixos em seu pai, que estava sentado no trono com um sorriso nos lábios e os olhos úmidos. Liz podia sentir os olhares das dezenas de homens sobre ela, como feras famintas prontas para atacar. Seus cheiros, seus cochichos, seus sorrisos maliciosos, tudo a amedrontava, tudo perturbava seus sentidos. Ela chegou ao trono. Ajoelhou-se. Beijou a mão de seu pai. Olhou em seus olhos. Aqueles olhos tristes deviam ser coisa de família. Levantou-se. Sentou em sua cadeira de espaldar alto. Estava servido o banquete.
Cada um dos homens foi até ela, confessando amores e paixões em diferentes línguas e sotaques. Prometeram terras em todos os quatro cantos do mundo. Compararam sua beleza com todas as flores e estrelas conhecidas. Os presentes amontoavam-se em uma pilha ao seu lado, sempre acompanhados de ofertas e desejos. Nada encantava a Liz, que tratava seus pretendentes com uma apatia fora do normal. Os homens, depois de conversar com ela, amontoavam-se nos cantos do salão aos berros e cochichos, alguns engrandecendo ainda mais suas virtudes, outros amaldiçoando sua frieza. E assim permaneceu o ciclo —galanteios, presentes, promessas, decepções, maldições — até que quase todos os cavalheiros já haviam conversado com a princesa. A aflição de Liz crescia a cada homem que passava por ela, a cada passo do destino em direção ao casamento. O tempo para escolher um marido estava acabando. Ela sentia nuvens negras aproximando-se, encobrindo seu sol, escondendo José de seus olhos, mas não de seu coração. Liz abaixou a cabeça e ficou olhando para o chão de pedras esverdeadas, com os olhos queimando, até que o rei, seu pai, sussurrou no seu ouvido:
— Repara filha minha, que quem vem ali é o príncipe Alejandro de Alvo Campo, do qual falei, lembra-te?
A princesa não respondeu, apenas ergueu a cabeça já imaginando que tipo de aberração seu pai lhe havia reservado; talvez ele tivesse as pernas tortas, ou fosse um covarde, ou um total e completo idiota, como todos ali eram. Mas não foi isso que os afamados olhos da flor viram, para alívio — ou decepção — de Liz. O rapaz que vinha na sua direção não era como os outros homens do Salão Verde. Ele caminhava elegante e lentamente, como um príncipe deve andar. Trajava uma túnica negra, com um manto azul-marinho. Era sem dúvida o mais alto que ali estava, e de longe se podia ver sua cabeleira negra e sedosa. Seu rosto, apesar de claro, tinha um brilho de um dourado intenso, e contrastava com seus olhos escuros e sem vida. Ele aproximou-se de uma Liz deslumbrada, ajoelhou-se, tomou a mão dela entre as suas e beijou-a.
— É uma grande honra conhece-la, princesa — falou o rapaz. — Sou o príncipe Alejandro de...
— Já sei quem és.
— Claro. O rei já deve ter falado de mim, espero que bem.
— Muito bem, não se preocupe. É uma grande honra recebê-lo no nosso castelo — respondeu o rei. ­­— Como vai o seu pai?
— Receio que não muito bem, meu senhor. Ele está acamado já faz alguns dias, por isso não poderei ficar tanto quanto eu gostaria, mas ele mandou saudações, e espera que o senhor vá visita-lo qualquer dia desses.
— Diga a ele que não se preocupe, que assim que possível irei a Alvo Campo para saber o que aquele velho anda fazendo naquelas terras geladas — disse o rei por fim, voltando sua atenção para um criado que havia chegado com um rolo de pergaminho.
Alejandro voltou-se para a princesa, cravando seu olhar nela. Alguma coisa naqueles olhos causava um calafrio em Liz. Eles eram como dois abismos profundos, sem fim, e ela tinha medo de cair dentro deles. Tinha medo dos demônios que ali habitavam, e receava pelas suas lembranças e sentimentos, que uma vez deitadas às profundezas, definhariam sem a luz do sol.
— Seus olhos não são como todos dizem — disse o príncipe depois de um longo tempo em silêncio.
— O que o senhor quer dizer?
— Eles não são plácidos e... frios, como me contaram. Eu vejo calor neles. Inquietação, mistério, e até... seria medo?
— Medo de quê? — perguntou Liz, assustada. Como ele pode ver tudo isso? Ela imediatamente pensou em José, e no que poderia acontecer se alguém descobrisse o romance deles.
— Não sei. Foi bobagem minha. Gostaria de conversar com a senhorita em algum lugar mais reservado, longe dos olhares curiosos de todos esses cavalheiros. Talvez nos jardins, concordas?
Liz ficou surpresa, e iria recusar, mas seu pai disse que fosse. Alejandro tomou-a pelo braço e os dois caminharam em direção aos jardins. Lá o príncipe falou de como estava curioso em conhecê-la, e de como ficou feliz em descobrir que ela não era menos do que falavam, com exceção dos olhos, que eram muito mais lindos do que lhe haviam contado. Próximo às rosas ele elogiou sua beleza, e próximo às tulipas, sua discrição. Quando passavam pelos cravos, ele enalteceu sua inteligência, e no meio dos narcisos ele falou de si mesmo. À sombra de um gigantesco olmo ele contou do seu desejo de casar-se com ela, e próximo à fonte ela aceitou. Nenhum dos dois reparou em José, que assistia a tudo do meio dos lírios. Ele escutou pouco, mas foi o suficiente para entender que havia perdido Liz para sempre. Saiu do meio das flores, e foi entre os cavalos que ele chorou.

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(continua)

domingo, 9 de setembro de 2012

OS OLHOS DA FLOR - parte 1

Escrevi este conto como um presente para minha amiga, Lilian. No início, eu tinha a intenção de escrever apenas algumas laudas, mas as coisas saíram de controle, e deu no que deu. A história foi me tomando cada vez mais, me furtando do mundo real. Foram madrugadas habitadas por palavras, por fantasia realidade. Enfim, dividirei esta história em três partes, e espero que todos fiquem tão encantados por Liz quanto eu. 
Com vocês, Liz, a princesa que existe em todos nós.





Nos tempos idos de antigamente, vivia no reino de Brumário uma princesa tão bela e nobre que atraia cavalheiros de todo o mundo, vindos com o único intento de contempla-la. Condes do oeste, príncipes do norte, sultões dos desertos do sul, e todo tipo de homens nobres que se pode imaginar. Vivia esta princesa numa alta torre do castelo, e diariamente ela descia ao Salão Verde, trajando os mais lindos vestidos e as mais ricas joias que alguém já usou. Sentava-se em sua cadeira de espaldar alto, ao lado do trono do pai, e prostrava-se a receber seus admiradores. Era um ritual incessante de beijos em suas mãos, de galanteios, presentes dos mais extraordinários que há, juras de amor e tudo o mais. Liz (este era seu nome) tinha longos cabelos negros, a pele alva e macia como a mais fina das sedas, tinha lábios de beijo, e mãos delicadas, como as de um artista, mas eram seus olhos que mais encantavam, não por serem a parte mais bela de si, mas por destoarem de todo o resto, pois, apesar de sua boca sorrir, seus olhos eram tristes, não cediam a nenhum agrado ou elogio. Eram sempre infelizes e apáticos, mas não menos fascinantes por isso, pelo contrário, funcionavam como um desafio, quase um mito. “Quem merecerá os olhos da flor?” Era o que corria pela boca de todos os camponeses do reino e todos os nobres do mundo, e eram assim conhecidos seus plácidos e encantadores olhos, os “olhos da flor”.
                Eram tantos os pretendentes, e tantas as decepções, que a frieza de Liz tornou-se quase tão famosa quanto seus olhos. Era grande a curiosidade de todos para saber qual o motivo pelo qual a princesa, tendo tantos príncipes e condes aos seus pés, ainda não havia arranjado casório. Muitos diziam que ela, apesar do corpo de mulher, tinha cabeça de criança; alguns afirmavam que carregava algum tipo de encanto ou maldição; havia até quem dissesse que sentia prazer em ver tantos homens sofrendo de amor — diziam isso seus pretendentes ignorados, que pressionavam o rei para que ele arranjasse logo um noivo para sua filha, pois ela já passava da idade de casar. Estando o rei já farto desta história de casamento e amores não correspondidos, decidiu arrancar uma resposta definitiva da filha, tocando no assunto no jantar, depois de um dia extremamente cansativo no castelo:
                — Minha filha, você sabe que seu pai é um homem velho, e que meus dias neste mundo já vão pelos últimos. Não faça essa cara, querida, sabes que é verdade. Não encaro por mal a morte que se aproxima, pois ela daria fim a muitos sofrimentos que padeço, além do mais, eu encontraria sua mãe mais uma vez lá no paraíso, para que possamos ficar juntos pela eternidade. Já explorei muitas terras desconhecidas, já lutei muitas guerras, enfim, já posso dar por finda minha missão neste mundo, não fosse por um problema especialmente difícil de resolver que me aflige: nunca tive filho homem. Quis Deus me dar uma menina, o que me deixa satisfeito e feliz, de todo o coração, pois és merecedora de todo o amor e admiração que tenho por ti, mas há nisso um problema, pois, não tendo eu um varão como herdeiro, ficaria vazio o trono, não sendo permitido, pelas leis da linha sucessória, você receber a coroa. Tentei muitas vezes mudar essa lei, porque sei que serias capaz de governar este reino melhor do que muitos reis que há por aí, mas isto está além dos meus poderes, infelizmente. Onde quero chegar, minha filhar, é no seguinte: você já é uma moça, já chegou à idade de casar. Não fique assim minha flor, olhe para mim. Tens que entender que o futuro do reino está em tuas mãos, pois o cavalheiro que escolheres por marido será rei depois de mim, e governará tudo o que há entre o Vale das Horas e o rio Lauriano. Caso eu morra antes de arranjares um esposo para tu e um herdeiro para o trono, todos os reinos vizinhos, com exceção de Alvo Campo, iniciariam uma guerra para tomar as nossas terras, o que causaria a ruína do nosso povo, e eu não posso permitir que isso aconteça. Amanhã será o último dia que vais ter para escolher um marido. Um dia e nada mais, você entendeu? O amor que tenho por ti é enorme, mas o meu dever para com nossa terra e nosso povo é maior.
— Mas meu pai, eu não quero casar, não agora. Ainda não achei o homem certo.
— Achará amanhã, caso contrário eu encontrar-lhe-ei um, você querendo ou não. O príncipe Alejandro de Alvo Campo estará aqui, e quero que você dê atenção especial a ele, pois ele é filho do Rei Leon, meu amigo, e é herdeiro do trono.
— Mas meu pai, o senhor...
— Sem “mas”. Você encontrará um noivo amanhã. Boa noite.
O rei se ergueu e encaminhou-se para seus aposentos, deixando Liz, que começava a derramar incessantes lágrimas, sozinha a mesa. Ela levantou-se abruptamente e correu em direção ao seu quarto, mas quando chegou à escada parou, refletiu, enxugou as lágrimas e mudou de direção. Caminhou na penumbra, e esgueirou-se para fora do castelo. Foi em direção à cocheira, encoberta pela noite escura e sem estrelas. Adentrou a cavalariça, encaminhou-se para uma porta que havia no fundo e bateu-a.
— José, abra! Sou eu!
                Um rapaz rapidamente abriu-a, com um sorriso estampado no rosto. Seus cachos loiros emolduravam seu rosto branco e resplandecente. Liz rapidamente entrou no recinto e mandou que fechasse a porta. José obedeceu. Quando ele viu a aflição estampada em seu rosto, logo ficou preocupado, e o belo sorriso logo deu lugar ao medo do que poderia estar havendo.
                — Aconteceu alguma coisa? — perguntou José.
                — Meu pai.
                — O que houve com o rei?
                — Ele quer que eu me case.
                — Pensei que fosse alguma coisa mais séria — falou ele, tirando um peso da alma.
                — Ele quer que eu escolha um noivo amanhã... ou então escolherá um para mim. Amanhã José, amanhã — terminando de falar, Liz começou a chorar copiosamente.
                José não pronunciou palavra, apenas permaneceu estático. “Por que isso agora? O rei nunca havia feito isso, por que agora?” Pensou ele, num misto de incredulidade e raiva.
                — O que nós vamos fazer? — perguntou ele, por fim.
                — O que nós vamos fazer?! Não há nada que possamos fazer! Amanhã, a esta hora, eu estarei noiva, e nunca mais poderemos ficar juntos. Eu não posso viver assim!
                José abraçou-a, também se desmanchando em lágrimas. Ele tinha a garota mais linda do mundo em seus braços, e iria perdê-la. Ele não podia deixar que isso acontecesse, nem que para isso tivesse que abrir mão de tudo.
                — E se nós fugíssemos? — ele propôs.
                Liz parou de chorar, ergueu a cabeça e olhou fundo nos seus olhos, como se procurasse alguma verdade oculta ou revelação divina. Os olhos da flor. Ao contrário do que todos pensavam, eles tinham sim um merecedor. Quando ela estava com José, seus olhos deixavam de ser apáticos e tristes; tornavam-se alegres, curiosos e brilhantes. Era na companhia dele que ela era mais feliz e realizada; foi com ele que descobriu todos os prazeres que podem existir entre um homem e uma mulher. Ele era seu melhor amigo, seu amante, seu conselheiro, sua vida. Como viver sem ele? Ela afastou-se de seus braços, tirou a vista de seus olhos e respondeu, por fim:
                — Não posso fazer isso.
                — É seu pai, não é?
                — Ele já está velho, e já perdeu a mamãe, não sei se ele suportaria me perder também. Talvez ele até... ele... — ela não conseguiu terminar a frase, e lágrimas correram por seu rosto como em uma cachoeira.
                — Não fique assim, nós vamos dar um jeito — disse José, abraçando-a. — E se você tentasse falar com ele, explicar que não quer casar agora, talvez ele até...
                — Eu já tentei. Ele não quer ouvir. Diz que o futuro do reino está em minhas mãos, que eu preciso achar um herdeiro para o trono. Por que não pode ser você? Você é inteligente, e tenho certeza que seria um ótimo rei. Talvez se eu tentasse conversar com ele, falar de nós dois, talvez ele entendesse, talvez até apoiasse. Você é confiável, fiel, ele te conhece, gosta de você, e poderia...
                — Já falamos sobre isso, Liz. Por mais que seu pai goste de mim, ele jamais permitiria que um cocheiro se tornasse seu herdeiro, além disso, se você lhe contasse alguma coisa, talvez ele mandasse me prender, talvez até me matar, ou coisa pior.
                — O que poderia ser pior? Mandar você limpar a merda dos cavalos?
                — Eu já faço isso.
                — Eu sei — respondeu ela, com um sorriso no rosto. — Então é isso? Tudo acaba aqui?
                — Nada acaba aqui. Sempre estaremos juntos, e nada poderá nos separar.
                — Nada?
                — Nada.
                — Você jura? — perguntou ela, empurrando-o pare longe de si.
                — Juro. — respondeu ele, indo ao seu encontro.
                — Jura pelo quê? — retrucou ela, fugindo de seu abraço com um sorriso malicioso no rosto.
                — Juro pela lua.
                — É pouco.
                — Juro pelo Sol.
                — É pouco.
                — Juro por todas as estrelas do céu.
                — Ainda é pouco.
                José abraçou-a forte, olhou fundo nos seus olhos. Aproximou seu rosto do dela, e disse, num sussurro:
                — Juro por todos os momentos felizes que tive ao seu lado, por todos os sorrisos, os olhares, os suspiros e os beijos. Juro por tudo que houve entre nós, e pelo que ainda não houve. Juro por todo o amor que existe no meu peito. Juro que nunca vou te esquecer. E você?
                — Eu o quê?
                — Você jura?
                Liz não respondeu, apenas abraçou-o ainda mais forte, colou seu rosto no dele e beijou-o. Seus lábios pareciam pertencer um ao outro, tão grande era a entrega dos dois. José desceu sua boca até o queixo de Liz, depois ao seu pescoço. Enquanto ela se afogava em suspiros, José desamarrava delicadamente seu vestido de seda cinza, laço por laço. Desceu até seus firmes seios e beijou-os com o amor de quem beija uma relíquia, e continuou soltando os laços. O vestido caiu no chão deslizando pelo belo corpo de Liz, revelando uma beleza tão tentadora e deslumbrante que encantaria o mais frio dos homens. José tomou-a em seus braços, e os dois deitaram no chão de madeira fria e úmida. Seus corpos nus funcionavam com uma sincronia perfeita, como num ritual de entrega e sacrifício. Os músculos tensos de José comprimiam-na contra seu corpo suado, envolvendo-a por inteiro.  Ali, entre carícias e suspiros, ele possuiu-a com todo o desejo e paixão que conseguiu encontrar dentro de si, e ela retribuía com todo o calor que havia em seu jovem corpo, amando-o, devorando-o, colocando em chamas o quarto no fundo da cocheira. José sentia o incandescente ventre dela consumindo-o, junto com pernas, braços, boca e coração, como que derramando amor pelo chão. No silêncio da noite, os dois tornaram-se um, e o que antes era lágrima virou riso, o que era medo virou amor, e o que era humano tornou-se imortal.

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(continua)

quarta-feira, 5 de setembro de 2012

ENQUANTO CAMINHA O SOL




“Olha aquela! Parece um sapo” falava Ana, apontando para uma nuvem que flutuava placidamente no céu azul. Soprava uma brisa suave e o sol brilhava radiante, mostrando-se como em uma renda através das alvas nuvens. “Tá mais pra um piano” respondeu Luís, concentrando-se no ponto para o qual a amiga apontava. “Piano? Você fumou o quê? É um sapo. Olha a cabeça, as pernas...” respondeu a garota, sentando-se no chão e apontando com ainda mais afinco para a nuvem-sapo. “Ah, é essa? Pensei que você estava apontando para aquela. Realmente parece — um pouco — com um sapo”.
                — Cala a boca! Parece muito com um sapo! Você está querendo tirar onda com a minha cara! — esbravejou Ana, irritada, jogando terra no amigo.
                — Sempre estou tentando tirar onda com a sua cara, você deveria saber disso — Luís respondeu enquanto tirava uma folha de grama dos lábios.
               — Foi isso que você tentou fazer com ele? — perguntou a garota, sem tirar os olhos do horizonte.
               — Isso o quê? E de quem você está falando?
             — Não se faça de besta! Você sabe do que estou falando. Todo mundo da escola está dizendo que o Caio deu uma surra em você.
“É isso? Como tem gente mentirosa naquela escola. Nós não brigamos. Ele não conseguiu encostar um dedo em mim...” esclareceu o garoto em um tom arrogante, com a feição de quem havia acabado de salvar o planeta. “Claro que ele não bateu em você, a diretora chegou antes”.
— Se você sabia o que aconteceu, então por que veio dizer que ele deu uma surra em mim? — perguntou Luís, exaltando-se.
— Foi só pra tirar onda com a tua cara — respondeu a garota com um sorriso expandindo-se em sua face. — E, de qualquer jeito, se aquele babaca tivesse mesmo batido em você, ele ia ver só uma coisa.
— Ia? Como assim?
— Eu iria atrás daquele bundão e daria uma bela surra nele — respondeu Ana, apertando os olhos e fazendo cara de brava.
— Você? Mas você não passa de uma garota — Luís opinou, entre uma gargalhada e a incredulidade.
— Exatamente. Assim ele não poderia fazer nada comigo. Quero ver se ele teria coragem de bater numa menininha inocente — ela rebateu, falando em tom meigo.
— Tá meio difícil alguém acreditar que você é uma “menininha inocente” — contestou o garoto, olhando apático para uma formiga que andava perto dos seus pés. — Você faria mesmo isso por mim? — ele perguntou, sem erguer os olhos do chão.
— Claro que faria! Você é meu melhor amigo. Eu faria qualquer coisa por você — respondeu Ana quase gritando, mas depois se envergonhou, e também ficou olhando para o chão, procurando sua própria formiga.
Um longo silêncio planou entre os dois, até que Luís decidiu quebra-lo. “Mas aquela nuvem, definitivamente, não era um sapo”. “IDIOTA!” gritou Ana, pulando sobre ele como uma fera. Enquanto ela enfiava tufos de grama na boca dele, Luís sujava os cabelos dela com qualquer coisa que estivesse ao alcance de suas mãos. O sol permaneceu a vagar pelo céu, derramando vida sobre a terra, e abençoando aquilo que nem o tempo pode destruir. E a história continuou.


Dedico este conto para Aline Luisa,
a garota que me ensinou que a amizade é uma guerra,
onde, para vencer, é necessário render-se.

sábado, 1 de setembro de 2012

EPÍLOGO




Você não sabe, não é?
Não sabe o que é uma noite habitada por terrores;
Não conhece os sonhos que eu vendi;
As esperanças que vi definhar;
Não sabe o que é alçar voo em direção ao chão.
Você não entende os calafrios que já senti,
Nem porque a madrugada me obriga a chorar;
Me obriga a farejar os cadáveres como um cão.

Cada luta vencida;
Cada gota do meu sangue derramada
não serviu de nada.
Sou obrigado a ajoelhar-me diante de um rei
que eu não vi ser coroado,
Mas que aponta seu cetro para mim e
me chama de “bastardo”.

Você não sabe, não é?
Não sabe o que é olhar as estrelas
enquanto despenca num abismo.
Você não sente o peso das correntes que carrego;
Cada elo me unindo a uma desgraça que eu não vivi.
Você desconhece os monstros que eu tive que matar,
e ainda assim ver a Medusa me petrificar.

Agora todos os miseráveis chamam meu nome em uníssono;
Clamam para que eu volte para casa e saia da presença do rei.
Ainda sinto a pressão da venda sobre os meus olhos;
Mas a verdade se enrosca em símbolos diante de mim.
Às minhas costas, os demônios;
Exigindo o pedaço de mim que lhes é de direito;
À minha frente, o imperador;
Pedindo em ouro o que não posso pagar com vida;
E em minhas mãos, o feto ensanguentado
Do que já sonhei viver;
Do futuro que vi morrer;
Da escuridão que vi crescer.