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segunda-feira, 29 de outubro de 2012

DOCE ESCURIDÃO - parte 3




A BRUXA


                Um cheiro doce invadia a narinas de Kevin, e seus olhos estavam pesados e cheios de areia. Ele olhou em volta e percebeu que estava num suntuoso quarto, deitado numa cama de dossel com cortinas azuis. Tentou levantar-se, mas uma fisgada na nuca o forçou a parar. Olhou mais uma vez em volta, procurando pela irmã, mas não encontrou sinal dela no espaçoso cômodo. Um ronco vindo de sua barriga lembrou-lhe que ele não comia havia... há quanto tempo estou deitado aqui? Ele mais uma vez tentou levantar, resistindo com todas as forças às dores que sentia. Caminhou até uma mesinha próxima a cama, onde encontrou pão, queijo, figos e uma jarra de leite. Kevin comeu tudo com tanta pressa que quase colocou tudo para fora, mas, depois de vencer as ânsias de vômito, sentiu-se melhor. As dores no corpo já começavam a diminuir, e o estômago não lhe soava tão feroz.
Uma grande janela em forma de arco subia do chão ao teto, permitindo a entrada dos quentes e aconchegantes raios do sol. Lá fora um vasto jardim estendia-se em todas as direções, com flores de todos os tipos e formatos, e pontilhado aqui e ali por fontes ou árvores frutíferas. Imagens da floresta assombrada voltaram subitamente a sua cabeça, fazendo-o sentir qualquer coisa gelada subir pela espinha. Um temor avassalador tomou seus pensamentos, fazendo-o questionar-se onde estava a irmã e como havia chegado ali. Ele caminhou rapidamente para a porta, abrindo-a de supetão e despontando num largo corredor repleto de tapeçarias. Kevin passou por inúmeras portas, andando cada vez mais rápido e chamando pelo nome da irmã, mas a única resposta era o eco dos seus passos e sussurros distantes que diziam “Sophie, Soph, So...”. Quando ele estava começando a achar que aquele corredor não tinha mais fim, deparou-se com uma escada em caracol que descia para sabe-se lá onde.
                O garoto desceu com passos cautelosos, apurando os ouvidos, mas não se escutava nada. Até os ecos haviam lhe abandonado.  A escada dava num vasto salão que parecia ser inteiramente feito totalmente de ônix e ouro. Kevin ficou totalmente boquiaberto com aquela visão, pois nunca havia visto nada parecido com aquilo. Ele já tinha esquecido totalmente o que estava fazendo, quando o som de risos chegou aos seus ouvidos. O garoto correu pelo salão, cada passo soando como um trovão. Ali também havia inúmeras portas, mas havia uma entreaberta, e ele esgueirou-se por ela. Kevin encontrou a irmã sentada num grande sofá, numa vasta sala arejada, conversando com uma mulher vestida dos pés à cabeça de rosa e púrpura, com cabelos roxos que se amontoavam num rabo de cavalo no topo da sua cabeça, descendo até a cintura. No momento em que Sophie avistou o irmão, saltou sobre ele e abraçou-o forte. As dores ainda incomodavam Kevin, mas ele retribuiu o abraço com todo o calor possível.
                — Pensei que você nunca mais iria acordar — ela disse, soltando o irmão e olhando-o com os olhos cheios de lágrimas.
                — Por quanto tempo eu dormi?
                — Quatro dias — a voz da garota falhou.
                — Não fique assim, já estou melhor agora. Que lugar é esse? — ele perguntou com um sussurro, olhando de relance para a mulher de cabelos roxos, que o olhava com um sorriso e levantava-se do sofá.
                — Este é o palácio de Lady Liana. Foi ela que nos salvou na floresta. Se não fosse por ela...
                — Como a senhora conseguiu espantar as árvores? — Kevin perguntou abruptamente para a mulher que estava em pé ao lado da irmã.
                — Não foram as árvores que atacaram vocês, e sim as aranhas-cantantes. O veneno delas é muito poderoso, e é capaz de causar alucinações.
                — Aranhas? Não foram aranhas que nos atacaram, foram árvores. Eu senti as raízes me prendendo...
                — Tudo não passou de uma alucinação.
                Kevin olhou para a irmã, esperando que ela contasse para a mulher o que havia acontecido, mas Sophie parecia acreditar na história da estranha. Lady Liana percebeu a incredulidade do garoto, e continuou:
                — Encontrei sua irmã gritando e esperneando, e você quase morto. As aranhas tem medo do fogo, por isso fugiram de mim. Você levou muitas picadas, e pensei que não fosse sobreviver, mas, ao que parece, você é um rapaz forte.
                — Picadas? Não me... — foi quando Kevin olhou para o próprio braço e encontrou uma infinidade de pontinhos vermelhos espalhados aos pares sobre ele. O garoto ergueu olhos esbugalhados para a mulher, que retribuiu com um sorriso fraternal. — Obrigado por me salvar Lady Liana... a mim e a minha irmã — agradeceu  o garoto, acanhado.
                — O que importa é que você está bem. Os dois estão bem — disse ela por fim, colocando um braço em volta de uma Sophie alegre e sorridente.
                — Não confio nesta mulher — disse Kevin à irmã quando os dois estavam passeando pelos vastos jardins.
                — Você deveria estar grato. Foi ela que salvou nossas vidas — a garota rebateu, fazendo cara de brava.
                — Eu estou grato, mas não confio nela — ele parou para olhar a estátua de um fauno. Seus olhos eram duros e penetrantes, e Kevin teve a impressão de que a criatura o encarava. Desviando rapidamente o olhar, ele continuou sua caminhada. — Deveríamos ir embora.
                — Você está louco?! — dessa vez foi Sophie que parou de caminhar. — Nós temos tudo o que precisamos aqui, e Lady Liana disse que poderíamos ficar o tempo que quiséssemos.
                — Não podemos ficar aqui Sophie. Precisamos encontrar nossa mãe, ou pelo menos descobrir o que aconteceu com ela.
                A garota olhou para o chão, e assim ficou durante um longo tempo, então falou, com uma voz que se perdia no vento:
                — Você tem razão. Durante o jantar falarei com a Lady, e direi que iremos embora amanhã.
                Mas Sophie nem chegou a jantar. Assim que o sol se pôs, uma súbita febre atacou-a, deixando a garota acamada. Quando Kevin recebeu a notícia, correu para o quarto da irmã, e entrou gritando “O que ela fez com você?!”, mas ela não parecia estar escutando. Sua pele estava pálida, e veias roxas eram visíveis em seu pescoço.
                — Foi o veneno das aranhas. Talvez ele não tenha sido totalmente expurgado do corpo da sua irmã — disse Lady Liana, saindo das sombras calmamente.
                — O que você fez com minha irmã? — perguntou o garoto, exaltado. — O QUE VOCÊ FEZ COM ELA? DIGA! — a voz dele trovejava, mas Liana continuava indiferente.
                — Você não deveria sair por aí acusando as pessoas sem provas.
                — Você não me engana. Eu sei que aquelas árvores eram verdadeiras, e era você que as controlava! Foi você que colocou aquelas marcas na minha pele, e quando descobriu que nós iriamos embora, deixou minha irmã desse jeito. O que você quer de nós?!
                Lady Liana — ou seja lá quem ela fosse — deu alguns passos para a frente, com os longos cabelos roxos espalhando-se atrás de si. Um sorriso sutil e cruel brotou em seus lábios. Kevin sentiu o chão sumir sob seus pés enquanto a bruxa andava em sua direção, e mais uma vez os sussurros da floresta assombrada soaram em seus ouvidos. Um cheiro doce e inebriante emanava dela.
                — A vida é muito preciosa para ser desperdiçada com criaturas como vocês.
                Kevin não se lembrava de ter fechado os olhos, mas, mesmo assim, abriu-os. Uma cortina azul cercava-o, filtrando a luz do sol. Ele levantou-se e olhou em volta. Tudo estava em perfeita ordem, não fosse por sua cabeça, que nunca esteve tão pesada. O garoto tinha a impressão de que estava esquecendo alguma coisa, até que se lembrou da irmã e da bruxa. Correu desesperado para a porta, mas estava trancada. Jogou-se contra ela algumas vezes, sem conseguir resultado algum. Procurou o machado para arrombar a fechadura. Não o encontrou. Lembrou-se da janela. Chegando nela, olhou para baixo através do vidro grosso. A altura até o chão era bem grande, mas ele achava que seria capaz de escalar a parede. No entanto, ela também estava trancada. Correu o olhar pelo quarto procurando uma maneira de fugir dali, e deparou-se com a mesinha ao pé da cama. Agarrou-a pelos pés e jogou-a com toda a força contra o vidro, que se espatifou em milhares de cacos afiados. Kevin pulou o parapeito da sacada e começou a descer o muro segurando-se nas brechas entre as pedras. Quando estava a cerca de dois metros do chão, saltou e caiu em cima de um arbusto.
Ele caminhou em torno do palácio procurando uma entrada, mas todas estavam trancadas. Foi só depois de muito tempo que encontrou uma porta velha e rachada de dava num cômodo empoeirado. Saiu por outra porta para um corredor estreito e sinuoso. Deste corredor entrou em outro, e depois outro. Perto da estátua de uma velha corcunda encontrou uma escada com os degraus gastos. Desceu-os saltando de dois em dois, sem se importar com barulho que fazia. Um cheiro doce subia das profundezas­, enchendo a escuridão com um ar denso e inebriante. Ecos ressoavam nas paredes gastas e chegavam-lhe aos ouvidos. Vozes, suspiros, e outros sons indistinguíveis. A escada terminava numa câmara circular e rodeada de tochas. Arcos escuros abriam-se em toda a extensão da parede curva, dando a impressão de que sombras o observavam e iriam atacá-lo sem o menor aviso. Vozes pareciam vir de todos os lugares, enchendo o espaço cavernoso com os brados de uma multidão.
Kevin correu colado à parede, esperando descobrir onde estariam a bruxa e a irmã. Quando passava por um dos portais, uma lufada de ar quente e doce envolveu-o. Ele entrou tateando no corredor escuro, sentido sob suas mãos pedras ásperas e úmidas. Virou à direita, depois à esquerda, e mais uma vez para esquerda. Uma sutil luz dourada emanava de uma porta entreaberta no fim do corredor; ele caminhou até ela com passos leves e silenciosos, abrindo-a com todo o cuidado possível, mas, mesmo assim, um rangido alto denunciou sua presença. Liana ergueu a cabeça, revelando pupilas dilatas e sangue escorrendo por sua boca e queixo, dando-lhe a aparência de um animal feroz e roxo. Ela lançou ao garoto um olhar apático e desdenhoso, e um sorriso cheio de dentes abriu-se em seu rosto.
— Você demorou. Eu já estava me perguntando se alguma das minhas estátuas tinha lhe feito algo — a voz da bruxa soava assustadoramente alta naquela sala. — Veio buscar sua irmã? Só espere eu acabar e ela será toda sua.
Sophie repousava nua sobre uma mesa alta e estreita. Pequenos cortes abriam-se em seu ventre, garganta e pulsos, derramando finos fios de sangue sobre a pele pálida, num assustador contraste de vermelho e branco. Ela ainda respirava, mas com muita dificuldade. O machado de Kevin e o punhal da irmã estavam sobre uma pequena mesa cheia de velas do outro lado do cômodo. Ele começou a caminhar até lá calmamente, encarando a bruxa.
— O que você quer dela? — Kevin fez toda a força para parecer calmo, mas sua voz trêmula o denunciava. Ele só esperava que a bruxa não fosse capaz de ler mentes.
— Eu já te disse, queridinho. Quero apenas a sua vida. Nada além da sua vida — a última palavra saiu mais parecida com um silvo do que com uma voz humana.
— O que você quer é vida? Então venha pega-la — o garoto pegou o punhal sobre a mesa e fez comprido corte no seu braço esquerdo, largando a arma em seguida. Ela caiu no chão, enchendo a sala com som de metal contra pedra. — Venha, pode beber. Sou muito mais forte do que ela. Existe muito mais vida em mim do que nela. Venha. Beba — ele estendeu o braço cortado em direção à bruxa.
Liana caminhou até ele trôpega, suas narinas arreganhando-se. Agarrando o braço dele com as duas mãos, ela bebeu o sangue avidamente. Um prazer supremo tomava o corpo da bruxa enquanto ela sugava o líquido quente do garoto, e nem reparou quando ele puxou um caco de vidro que trazia escondido na cintura. Kevin enfiou o caco afiado na barriga dela com toda a força, até não poder mais. Liana largou-o e andou para trás, olhando para o sangue que jorrava de sua barriga. Ela ergueu o olhar para o garoto, escancarou a boca e soltou uma gargalhada tão profunda e poderosa que fez o coração dele parar, e seu corpo todo gelou. Liana arrancou o caco de vidro e espatifou-o na palma da mão. Seu olhar havia se tornado ainda mais feroz. Não existia mais nada de humano nela.
— Garoto idiota! Você achou que seria capaz de me matar? — ela lhe deu uma tapa tão forte que Kevin voou sobre a mesa cheia de tocos de velas às suas costas. Ela espatifou-se sob seu peso, atirando lascas de madeira e cera quente em todas as direções. A bruxa debruçou-se sobre o garoto, derramando sobre ele seu característico cheiro doce. — Eu fui muito boa até agora, livrando-lhe de ver sua irmã morrer lentamente, mas você não me dá escolha. Você irá escutar cada grito de dor e desespero dela, verá seu corpo contorcer-se de agonia e presenciará a vida deixando-a — sobre a mesa, Sophie acordou com um suspiro, começando a gritar e a chorar quase que imediatamente.
Kevin olhou a bruxa nos olhos. Todo o medo havia abandonado o garoto, e um ódio abrasador queimava suas entranhas.
— Eu acho que não — ele ergueu o machado, que caíra próximo de sua mão, com a velocidade de raio, partindo ao meio o pescoço da bruxa com um único golpe. A cabeça cheia de cabelos roxos tombou para o lado com um baque seco, e o corpo de Liana desabou para trás.
Kevin largou a arma e correu até a irmã, que chorava copiosamente sobre a mesa. Ele passou a mão nos seus cabelos e sorriu para ela. Sophie retribuiu o sorriso entre soluços, ainda com os olhos cheios de lágrimas.
— Tudo vai ficar bem agora — ele disse, também chorando. — Acabou.

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

DOCE ESCURIDÃO - parte 2



A FLORESTA ASSOMBRADA


 A garota ergueu os olhos para o céu, mas as árvores eram tão próximas umas das outras que não era possível ver as estrelas, muito menos a lua, que estava negra naquela noite. Eles andaram tateando durante um tempo, mas depois de muitos tropeços e pés presos em buracos e raízes, resolveram parar.
                — Quando o sol nascer continuamos — disse Kevin, encostando-se numa árvore e sentando no chão. — Durma.
                Sophie juntou as folhas que encontrou ao seu redor e deitou sobre elas, mas não conseguiu dormir. O vento que soprava entre as árvores fazia-as ranger e balançar, enchendo a floresta com fantasmagóricos agouros, gelando a espinha da garota. O resto da noite pareceu demorar uma eternidade para passar, mas, quando o sol enfim começou a nascer, uma pálida luz cinzenta inundou a floresta, revelando troncos antigos e retorcidos, com folhas escuras que bebiam o fraco brilho que conseguia passar pelas copas das árvores. Não se podia enxergar mais do que dois metros em qualquer direção, tão densa era a vegetação. Kevin ainda estava sentado no mesmo lugar, com olheiras e um profundo arranhão na bochecha. Ele encarava o nada, com o machado em mãos. Sophie olhou em volta, tentando descobrir de onde haviam vindo, mas eles andaram às cegas durante muito tempo, e agora ela tinha perdido totalmente a noção de onde se encontravam.
                — Estamos perdidos — disse Sophie, levantando-se e limpando o vestido de tecido rústico.
                Kevin assustou-se, agarrando o machado com força e olhando em volta. Ele encontrou a irmã em pé, tirando gravetos do cabelo. Após olhar rapidamente as árvores ao seu redor, chegou à mesma conclusão.
                — Não podemos estar muito longe da estrada, não andamos tanto assim.
                — Para onde vamos agora?
                — Não sei — disse ele, já de pé e girando nos calcanhares. — Podemos procurar alguma coisa para comer, quem sabe encontramos até uma cabana.
                — Uma cabana? Aqui? — Sophie franziu a testa.
                — Você tem alguma ideia melhor? — rebateu ele, irritado. A irmã limitou-se a olhar para o chão. — Me dê seu colar.
                — O quê?
                — Seu colar. Me entregue ele.
                — Pra que você o quer? — rebateu ela, agarrando-se ao objeto. — Foi a mamãe que me deu.
                — Vamos usar as contas dele para marcar o nosso caminho pela floresta. Se elas acabarem, nós voltamos para cá e tentamos outra direção.
                Sophie hesitou em tira-lo do pescoço, mas por fim entregou-o ao irmão. Ele partiu o fio que o sustentava e segurou as contas na mão em concha. Os dois penetraram ainda mais fundo na floresta sombria, passando por troncos cinzentos e galhos retorcidos. Kevin ia à frente, jogando as bolinhas vermelhas por onde passava. Caminharam por horas e horas, sem encontrar nada que lhes pudesse ser útil. Cada árvore parecia ser igual a anterior, derramando as mesmas sombras sobre o mesmo solo em decomposição. As contas, enfim, acabaram, e os dois começaram a regressar. Voltaram seguindo o caminho das bolinhas vermelhas, pegando-as e guardando nos bolsos, no entanto, depois de algum tempo, não conseguiram mais encontra-las. Procuraram ajoelhados por entre folhas e raízes, mas não acharam as outras contas em lugar algum. Sophie, depois de desistir, levantou-se e começou a limpar os joelhos, quando enxergou um sutil brilho vermelho numa árvore próxima. Aproximou-se e descobriu que era uma das contas, presa num dos galhos. Esticou a mão e pegou-a, olhando-a com curiosidade.
                — Foi você que a colocou aqui? — perguntou ela, sem olhar para trás.
                Não foi uma resposta que chegou aos seus ouvidos, e sim um grito e um baque surdo. Ela virou-se, sobressaltada, e encontrou o irmão jogado no chão, empunhando o machado e lutando contra... alguma coisa que havia agarrado seu pé. Foi quando sentiu algo roçando em seus cabelos, e, no momento em que levantou a mão e levou-a a cabeça, um galho enroscou-se em seu pulso. Ela puxou o braço com toda a força, mas o galho prendeu-a ainda mais, e sentiu uma raiz enrolando-se em seu tornozelo. Um grito de fúria chamou sua atenção, e, quando olhou para frente, deparou-se com o irmão correndo em sua direção, erguendo o machado sobre a cabeça. Ela fechou os olhos, esperando pelo pior, mas tudo o que sentiu foi o pulso que estava preso relaxar. Quando abriu os olhos, seu braço estava livre novamente, e Kevin atacava a raiz que se enroscava em sua perna. No momento em que ele finalmente conseguiu corta-la, o que sobrou voltou contorcendo-se para dentro da terra. Mais galhos e raízes erguiam-se ao redor dos irmãos, então os dois começaram a correr desembestados por entre as árvores; Kevin na frente, golpeando com o machado qualquer coisa que entrasse em seu caminho, e Sophie atrás, brandindo o punhal e cortando o ar, e algumas folhas.
Os dois tiveram a impressão de ver rostos nas árvores, alguns sorridentes, outros bravos, sussurrando para eles qualquer coisa incompreensível. A floresta havia se tornado mais fechada, e ficava cada vez mais difícil driblar dos galhos que tentavam agarra-los. Um deles agarrou no braço em que Kevin levava o machado, e outro, enroscou-se em sua cintura. Ele procurou pela irmã, e encontrou-a sendo arrastada, aos gritos, por uma raiz. A garota apunhalou-a, mas outras já haviam se juntado a primeira, e subiam por suas pernas. Sophie estava sendo puxada em direção a uma árvore cinzenta e esguia. Ele tentou gritar, mas um galho grosso enroscou-se em sua boca e garganta, sufocando-o. Sentiu-se sendo puxado para trás, com raízes e cipós enrolando-se por todo o seu corpo, apertando-o cada vez mais forte.
O ar já não entrava nem saia de seus pulmões, e sua vista estava começando a turvar-se. Ele não tinha mais forças em seus membros, e parou de resistir à árvore. Kevin não escutava mais os gritos da irmã, e a floresta escurecia e fechava-se ao seu redor. Quando ele já havia abandonado qualquer ilusão de sair vivo dali, uma luz dourada irrompeu na sua frente, derramando-se sobre uma sombra púrpura. O vulto caminhou em sua direção, banindo as árvores para a escuridão. A figura ficava cada vez mais próxima, num turbilhão de roxo e dourado. Kevin perdeu todas as suas forças, e mergulhou nas sombras da floresta, deixando qualquer luz ou esperança para trás. A morte é roxa, foi o que ele pensou enquanto despencava nos ecos da escuridão.



(continua)

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

DOCE ESCURIDÃO - parte 1


   Um dia desses, arrumando meu quarto, encontrei uns livrinhos infantis que eu ganhei quando criança. Entre eles estava João e Maria, meu conto de fadas favorito. O que mais me encanta nessa história é fato de duas crianças — irmãs, o que só dificulta as coisas — se unirem para sobreviverem num ambiente hostil e assustador. Eles não precisam da ajuda de fadas ou coisas do tipo, simplesmente encaram os desafios e dificuldades que encontram no caminho, não importa se é uma floresta sombria ou uma bruxa filha da p... É por isso que decidi escrever uma nova versão dessa história, mostrando a visão que eu — agora um pouco mais crescidinho — tenho deste “conto de fadas” sem fadas.

   A narrativa me dominou, e as coisas saíram de controle. Irei posta-la dividida em 3 partes, e espero, do fundo do coração, que ela consiga ser tão boa quanto o conto original.

            Era uma vez...



 ECOS NA NOITE

Sophie abriu os olhos assustada. Sua respiração estava pesada, o corpo coberto de suor, e o coração palpitava freneticamente, retumbando em seu peito. O silencio inundava a noite, envolvendo a garota num absoluto vazio.  Estrelas espreitavam-na por entre as altas árvores. Gotas de luz num mar de escuridão. Tentando se acalmar, ela questionou-se o que a havia acordado. Talvez tivesse sido apenas mais um dos sonhos que vinha  tendo desde o que aconteceu na aldeia. Era frequente acordar no meio da noite chorando, e até gritando; mas dessa vez não havia lágrimas em seu rosto, e a paz reinava na noite escura e fria, até que um som chamou sua atenção, o som de folhas sendo pisadas, e um vulto passou ao seu lado. Ela ergueu-se com um salto, agarrando o punhal que carregava consigo, e apontando-o para todos os lados.
                — Fique quieta — disse um sussurro vindo com o vento. Ela abaixou a mão e caminhou em direção a voz, cautelosa. O irmão estava encostado numa árvore, olhando para a mata escura.
                — O que houve? — ela perguntou quando o alcançou.
                — Ouvi alguma coisa — sua voz era quase inaudível.
                Os dois quase não respiravam, esperando escutar ou ver algo, ficando assim durante um longo tempo, e quando já estavam perdendo as esperanças, um ruído metálico chegou aos seus ouvidos, sutil como uma brisa. Os irmãos se olharam, ela assustada, ele pálido, então Kevin saiu de detrás da árvore e começou a caminhar em direção ao som, cauteloso. A irmã olhou-o aterrorizada e incrédula, e, controlando-se para não gritar, disse:
                — O que você vai fazer?
                — Descobrir de onde vem esse som — Kevin respondeu, sem olhar para trás.
                — Isso é loucura — rebatou ela, com a voz esganiçada.
                O irmão não falou mais nada, apenas continuou andando. Sophie olhou em volta, para a escuridão que a cercava, saltou de detrás da árvore e correu atrás dele, fazendo muito barulho. “Onde você pensa que vai?” ele perguntou virando-se para ela, irritado.
                — Vou com você.
                — Não, não vai. Você vai ficar aqui e me esperar — Kevin disse, voltando a andar.
                — Não vou ficar aqui sozinha — ela disse, agarrando o braço do irmão.
                Ele encarou-a com olhos furiosos, iluminados pela fraca luz das estrelas, e disse, apontando o dedo para o seu rosto:
                — Se você fizer algum barulho, por menor que seja, eu te mato.
                — Não mata não.
                Eles caminharam por sobre o chão da floresta como duas sombras, sem fazer nenhum ruído. O barulho metálico voltou a reverberar por entre as árvores, mais alto do que antes. Chegaram a uma pequena colina, e Kevin subiu na frente, agachado, agarrando-se a raízes e pedras; Sophie veio logo atrás, seguindo o rastro do irmão. À medida que subiam, outros sons chegavam aos seus ouvidos: passos, o relinchar de cavalos, vozes, gargalhadas. Quando alcançaram o topo do morro ficaram encolhidos atrás de um arbusto. Esticando a vista para baixo, depararam-se com um acampamento. Uma fogueira ardia no centro dele, derramando sua luz bruxuleante e alaranjada sobre tendas rústicas, cavalos e carroças. Alguns homens bebiam e riam em torno do fogo, usando mantos de pele e carregando espadas na cintura. Kevin e a irmã ficaram paralisados olhando para os estranhos em torno da fogueira, até que alguma coisa no limite do acampamento chamou a atenção do garoto. Ele apertou os olhos, focando numa carroça que não parecia ter nada de diferente das outras, mas... ele enxergou uma pálida mão agarrada as suas grades, e depois outra. Kevin forçou ainda mais a vista, então percebeu que eram pessoas que estavam dentro dela. Embora não pudesse distinguir os rostos envoltos em sombras, podia imaginar quem eram.
                — São eles — disse uma voz tremula ao seu lado.
                Ele virou-se para o lado e olhou para a irmã. Ela estava pálida e com os olhos vidrados, agarrando-se com força aos galhos do arbusto. Kevin pegou a mão dela e arrastou-se para trás, procurando ser o mais silencioso possível, mas, agora, sua respiração lhe parecia ser tão sonora quanto um trovão. Os dois esgueiraram-se pelas árvores, caminhando às cegas por entre troncos e raízes. Antes que percebessem, já estavam correndo pela floresta afora, fugindo do acampamento e dos homens que nele estavam. Galhos baixos aranhavam seus rostos, e pedras soltas os ameaçavam com tropeções, mas eles não paravam. Por mais tortuoso que parecesse o caminho, eles não podiam parar.
                Lágrimas corriam pelo rosto de Sophie, derramando-se sobre as folhas em decomposição. Imagens da aldeia em chamas voltaram a sua cabeça, e ela quase podia sentir o cheiro de madeira e carne queimando. A garota já não escutava o som de seus passos, nem dos galhos quebrando sob os seus pés; o único som que reverberava em sua cabeça eram os gritos da mãe, gritos de terror... e as gargalhadas. Sophie achava que nunca conseguiria esquecer aquelas gargalhadas. Gargalhadas diabólicas, de um prazer sádico. Provavelmente sua mãe era uma das prisioneiras dos bárbaros agora, ou poderia ter tido o mesmo destino de seu pai. Ele havia lutado para defender a aldeia, mas eles o pegaram e... a fogueira...
                Ela emergiu de suas lembranças com o irmão balançando seu ombro. Sophie estava ajoelhada no meio da estrada por onde tinham fugido da aldeia, com as mãos sobre a terra nua, e uma poça de vômito na sua frente. Sua respiração estava irregular, o peito queimava, e um gosto amargo fazia-se presente em sua boca. Ela ergueu a cabeça para olhar o irmão. Ele carregava o machado que pegou antes de fugir da aldeia. Havia medo em seus olhos, e lágrimas, que se negavam a correr sobre sua pele pálida.
                — Não podemos ficar aqui. Eles vão nos encontrar. Eles têm cavalos. Precisamos sair da estrada. Precisamos nos afastar o máximo possível. Vamos — Kevin disse, arfando.
                Sophie se levantou, e limpou a boca com as costas da mão. Os dois caminharam juntos em direção à floresta fechada do outro lado da estrada. Pararam na beira dela, deram as mãos e adentraram-na, sentindo o cheiro das folhas mortas e a total escuridão rodeando-os.


(continua)

segunda-feira, 15 de outubro de 2012

TODAS AS COISAS



                

Cansei de fingir que não me importo. Cansei de dizer que o amor é para os fracos; que a solidão é possível e necessária. O tempo passa lá fora enquanto eu brinco de ser superior e feliz. Ele não para pra me consolar, não interrompe o caos da vida para perguntar o que há de errado comigo. As janelas continuam embaçadas; o reflexo no espelho é o mesmo, os lençóis da cama são os mesmos. E não importa o que eu faça, não consigo mentir para minha sombra. Não posso me esconder no meio de livros empoeirados e fingir que vivo dentro deles, que sou um cavaleiro de armadura reluzente, com uma donzela a me esperar numa torre encantada.  Quero carne, osso, e sangue correndo nas veias; pulsando, pulsando...
         Quero viver histórias impossíveis. Quero reivindicar para mim todas as coisas de que falam as músicas; todas dizendo que existe alguém para mim. Chegue logo. Quero que alguém me aponte as estrelas; que olhe para mim e sorria, apenas sorria. É tão errado assim querer se iludir? Não suporto mais ouvir o sussurro da solidão, que me arrasta por entre vidas e vielas. Já conheço todos os infernos, e não desejo ser jogado neles novamente.
           Mesmo que eu saiba como todas as histórias acabam, ainda quero vive-las. Quero os olhares disfarçados, os beijos, as noites em claro, as brigas, as decepções, a despedida. Quero todos os problemas de alguém para mim. Quero tantas coisas, e nenhuma parece ser sólida o suficiente para eu agarra-la.
                — Cala a boca, imbecil! — troveja o tempo. Ele diz que a pessoa que eu procuro está lá fora, iludindo-se com alguém que acha que ama. Se ao menos eu soubesse como é o seu rosto; mas amando ou procurando o amor, somos todos cegos.
                Agora eu abro a porta e saio com os pés descalços. Grito por alguém. Todos olham para mim como se eu estivesse louco. Mas estão eles errados? Não recebo respostas de parte alguma, e enquanto eu berro desesperado, o mundo continua girando; as pessoas permanecem a amar e odiar umas as outras; e o alguém que eu procuro continua com a pessoa errada. Não há mais futuro, mas ainda existe esperança.

quarta-feira, 10 de outubro de 2012

O PASTOR E A SEREIA




Conta-se que há muito, muito tempo atrás, existiu, numa terra fértil e verdejante, uma aldeia onde os seus moradores viviam em perfeita paz e harmonia. Todos respeitavam uns aos outros, e tratavam-se com uma incrível cordialidade. Os homens trabalhavam, os velhos aconselhavam, as crianças brincavam, as mulheres cuidavam de suas casas, e assim, dia após dia, a aldeia seguia na mais pura serenidade. Mas não é a história desta aldeia, nem do povo que lá vivia, que venho aqui contar, e sim a de um de seus moradores, talvez dois. Vivia nesta terra um rapaz chamado Jon. Ele era um pastor, e, como tal, passava muitas horas sozinho nos prados que circundavam a aldeia, o que lhe dava tempo para pensar em certas coisas que os padeiros, açougueiros e ferreiros do seu povo não pensavam. Por que o céu é azul? E, se grama cresce assim como o cabelo, seria ela o cabelo da terra?  Esses eram apenas alguns dos questionamentos de Jon, com os quais ele gastava uma parcela do seu tempo, no entanto, a maior parte dele, ele passava pensava em apenas uma coisa, ou melhor, uma pessoa. Suzana, a filha do chefe da aldeia. Ela era a criatura mais bela que ele já havia visto. Seus cabelos cor de fogo, sua delicada boca, sua voz doce e melodiosa, Jon não sabia qual desses atributos o encantava mais. Todas as vezes em que ele a via, sentia seu coração acelerar, a barriga gelar e boca secar. É amor. Ele encontrara essa palavra — amor — num livro que contava a história de uma rainha que se apaixonara pelo irmão de seu marido. Entre uma das muitas páginas do livro, estava escrito “Amor é a doença que nos faz rir sem motivo, suspirar quando não estamos sentindo dor e da qual ninguém quer curar-se.” Jon não conhecia direito essas coisas de amor, mas sabia que estava amando.
                Ele também escrevia poesias quando estava sozinho nos campos vizinhos à aldeia. Nove em cada dez falavam de Suzana, e a que sobrava era dedicada às suas ovelhas, ou ao céu azul, ou à grama, que na verdade era o cabelo da terra, ou às árvores... Um dia, tomado por uma valentia súbita — e inspirado pelos corajosos heróis dos livros que lia —, ele decidiu mostrar seus textos para Suzana, e contar-lhe que a amava. Prometeu-lhe o céu, e as estrelas que nele estavam. Prometeu matar um gigante, e trazer-lhe a cabeça do mostro como uma prova do seu amor. Prometeu essas e muitas outras coisas, assim como faziam os cavalheiros de suas histórias. Só que alguém se esqueceu de lhe avisar que o mundo não é feito de papel e tinta. Suzana leu seus poemas, e gostou bastante de alguns deles. Entregou-os de volta para Jon, e, com uma expressão bondosa e uma sugestão de compaixão nos olhos, disse, com sua voz melodiosa: “Você é um rapaz maravilhoso, Jon, e seus poemas são lindos. Estou muito grata por você ter escrito coisas tão maravilhosas para mim, mas... eu não lhe amo.” O rapaz não se lembrava do que fez depois de ouvir essas palavras, mas quando deu por si, estava chorando às margens de um lago que ficava próximo à aldeia, e suas poesias estavam flutuando nas águas plácidas à sua frente, com a tinta sumindo do papel. Ele ficou observando seus sonhos boiando para longe, enquanto lágrimas mornas corriam por seu rosto e misturavam-se com a água doce do lago, até que, no meio dele, surgiu uma mulher, que veio caminhando sobre a superfície espelhada até parar na sua frente. Ela trajava um vestido de renda verde e dourada, e sedosos cabelos prateados escorriam por seus ombros e costas, misturando-se na água sob seus pés. Jon ficou encantado com aquela mulher, e não conseguia encontrar palavra para lhe dizer. Ela o olhava de cima, com brilhantes olhos azuis, nos quais orbitava curiosidade e mistério.
                “Por que choras, rapaz?” perguntou ela com uma voz que parecia o coro de dois mil anjos. Jon ficou extasiado, e complicou-se na hora de responder. “Eu... é... ela não... a Suzana...” A mulher misteriosa interrompeu-o antes que ele pudesse dizer qualquer coisa que pudesse fazer sentido. “Não chores mais por Suzana, Jon. Ela não é capaz de enxerga-lo, nem se quisesse.”
                Não é capaz de me enxergar? Como assim? E como ela sabe o meu nome?
                — Não se assuste Jon, não vim lhe fazer mal. Meu nome é Miriam, e sou a rainha do Mundo Azul. Há muito tempo venho procurando entre meu povo alguém que possa governar o reino ao meu lado, mas não achava entre meu povo ninguém apropriado para ser meu marido, até que me deparei com você chorando à beira do meu lago. Acho que encontrei um candidato para rei do Mundo Azul — disse ela por fim, com um sorriso acolhedor.
                — Candidato? O que você está querendo...
                — Você, Jon. Você será rei ao meu lado, e juntos governaremos o Mundo Azul.
                — Eu? Você... Perdão! A senhora deve estar enganada. Eu sou apenas um pastor, um homem...
                — Que não é como os outros homens — completou ela. — Você pensa com o coração, Jon. Você questiona-se sobre coisas que os outros homens, do meu e do seu povo, sequer pensam. Você procura entender o mundo ao seu redor, na esperança de vivenciá-lo e, até, muda-lo. Você não é como os outros homens.
                — Como a senhora...
                — Eu sei de tudo o que acontece abaixo e acima das águas deste lago. Então, Jon, você aceita casar-se comigo e ser rei do Mundo Azul?
                Ele levantou-se e limpou a lama dos joelhos. Jon não percebeu, mas havia parado de chorar. Olhou para traz, na direção da aldeia, mas só enxergou as altas árvores anciãs que se interpunham entre ela e o lago. Virou a cabeça e fitou Miriam nos olhos, na esperança de encontrar algum significado oculto em sua proposta, mas só encontrou sinceridade, e magia.
                — Sim, eu aceito — disse ele por fim, com voz decidida.
                — Ótima escolha. Mas tem uma condição — “Sempre tem, não é?” ele pensou. — Você nunca mais deverá ver Suzana, caso contrário irá se transformar num corvo. No lugar de seus braços e mãos, terá asas negras como a noite, e, em vez de uma voz humana, terá um crocitar estridente e sem sentido. Você concorda?
                “Sim” respondeu Jon, sem pensar duas vezes. “Então vamos indo. Quero que todos conheçam você” disse Miriam, com um sorriso quase inocente. Os dois então submergiram nas águas do lago, deixando Suzana e toda a aldeia para traz, indo rumo ao Mundo Azul.
                O reinado de Miriam e Jon foi um dos mais prósperos de que se tem notícia, e o povo nunca esteve tão feliz. Os habitantes do reino das águas veneravam-nos, e eles retribuíam com bondade e justiça.  Tiveram três filhos — Lua, Karina e Briam — que eram tão amados por seus pais quanto se pode ser. Foram sete anos de pura alegria. Sim, sete anos, pois não passou disso. Certo dia, Jon estava passeando pelos terraços do seu castelo submerso, quando percebeu uma agitação na superfície. Ele subiu para ver o que era, e quando chegou lá se deparou com uma mulher se afogando. Ele correu (nadou) para ajuda-la. Agarrou seu corpo e levou-a para a margem com toda a rapidez possível, e, quando deitou a mulher desacordada na terra úmida, percebeu que era Suzana. Antes que se desse conta do que estava acontecendo, penas negras já começavam a cobrir todo o seu corpo, e asas brotavam dolorosamente de suas costas. Ele não chorou nem gritou, apenas olhou para o lago. Não havia ninguém sobre suas águas. Não havia ninguém para socorrê-lo dessa vez. Quando Suzana acordou, encontrou apenas um corvo que a olhava com miúdos olhos negros.
                Suzana caminhou aos tombos para a aldeia, e lá foi amparada por seus vizinhos. Ela lhes contou a história de como havia se afogado quando uma das roupas que lavava havia flutuado para longe, e ela foi atrás, busca-la; e de como havia acordado misteriosamente na margem, sã e salva. Ela nem se deu ao trabalho de citar o corvo, o mesmo corvo que agora estava empoleirado na janela de sua casa. Jon adotou aquela janela como sua morada, saindo de lá apenas para comer. Ele viu através do vidro os cinco filhos de Suzana e seu marido, o grande e gordo Roger, dono da taberna. Ele viu a mulher que um dia amou atarefada com os trabalhos do lar. Viu-a gritar com os filhos, e apanhar do marido quando lhe serviu a sopa fria. Viu-a chorar enquanto limpava os restos de sopa do chão e mentir para seu irmão, que havia ido visita-la, dizendo que tropeçou numa cadeira e caiu de cara na quina da mesa. Ele viu o céu nublado, e pensou que ele, visto de debaixo d’água, é muito mais azul.

domingo, 7 de outubro de 2012

NO FIM DO CORREDOR





Hugo andava com a cabeça baixa pela rua escura, pensando no péssimo dia que teve. A nota baixa na prova de matemática; o caderno que ele não fazia ideia de onde havia deixado; a sola do sapato que começou a descolar. Tem dias em que tudo que poderia dar errado acontece, e este, definitivamente, era um desses um desses dias. Não havia vivalma na rua, e tudo o que se podia ouvir era um latido distante, e o som de uma televisão ligada. Hugo chegou em casa; procurou a chave na bolsa e abriu a porta silenciosamente. Pelo silêncio, presumiu que sua mãe estava dormindo. O estado em que ele encontrou a sala o deixou assustado: os móveis estavam revirados; as almofadas rasgadas; e o sofá estava praticamente virado do avesso, totalmente destruído. Aparentemente, todas as luzes da casa estavam acesas, mas não se escutava som algum, até que um barulho veio dos quartos.
                Ele largou a mochila no chão, e arrancou, o mais silenciosamente possível, um dos pedaços de madeira do sofá destruído. Hugo caminhou cautelosamente pelo corredor da casa, com a tora em mãos. Parou na frente da porta do quarto de sua mãe, que estava entreaberta. Segurou a maçaneta e empurrou-a lentamente, revelando uma cena que o deixou completamente aterrorizado. Sua mãe estava sentada no chão, encostada na parede oposta, chorando, com boca e testa sangrando. Um homem estranho revirava as gavetas com a mão esquerda, enquanto que com a direita apontava uma arma para Tereza, mãe de Hugo. O bandido não percebeu que ele havia aberto a porta, pois estava de costas para ela, mas percebeu quando o garoto partiu para cima dele com o pedaço de madeira, mirando sua nuca, e, por reflexo, disparou a arma. Hugo acertou o lado da cabeça do homem, que caiu desacordado. O garoto, instintivamente  procurou um segundo bandido, mas tudo o que encontrou foi sua mãe jogada no chão, com a blusa ensanguentada. Ele largou a tora, e correu para junto de Tereza. Ela já não respirava mais. Seus olhos estavam vidrados, e uma lágrima solitária derramava-se em direção a poça vermelha no chão. Hugo tentou reanima-la, mas não havia mais nada a se fazer. Ele envolveu o corpo da mãe em seus braços, sujando-se com o sangue fresco, enquanto dava urros de dor e desespero. O garoto havia esquecido totalmente do homem desacordado no chão do quarto, que começou a se mexer.
                Hugo virou o rosto para o bandido, que recobrava lentamente a consciência. Ergueu-se, deixando o corpo de Tereza no chão, e caminhou até ele. O homem tentava debilmente alcançar  a arma que havia caído a alguns passos de sua mão, mas Hugo chegou primeiro, pisando calma e pesadamente na mão que o bandido esticava, e pegando a pistola do chão. A mais pura frieza estava estampada em seu rosto, como se ele fosse um marionete, sendo controlado por fios invisíveis. Ele apontou a arma para o bandido, que, quando percebeu, ficou aterrorizado.

— Eu não tive culpa. Ela... eu precisava do dinheiro. Ela estava me devendo. Eu não queria... — mas Hugo não deixou o homem terminar de falar.

Os vizinhos, depois de escutarem o primeiro tiro, correram todos para a porta da casa de Dona Tereza. Ficaram questionando-se, aos cochichos, o que estava acontecendo lá dentro, espantados, pois Tereza e o filho não eram de se meter com coisas erradas — ou, pelo menos, era isso que aparentavam. No entanto, quando se ouviram mais três tiros vindos de dentro da casa, todos correram para suas respectivas residências, deixando a rua, novamente, deserta e silenciosa.

quarta-feira, 3 de outubro de 2012

CAUSA DA MORTE


                


Eu caminhava sozinho numa estrada empoeirada e sem vida, até que ela surgiu no topo do morro; como um sol, derramando uma luz prateada e fria onde antes só havia o silêncio e a escuridão. Eu gostava daquele brilho; cheirava a futuro, recomeço. Ela me abriu os braços, e sorriu. Ela sorriu... para mim. Cada mínima partícula de poeira ficou estática, suspensa no ar, quando aquele sorriso nasceu em seus lábios. A Terra parou de girar; os pássaros silenciaram seus incessantes cantos. Ela me abriu os braços, e eu lhe abri a alma.
                Ela pegou minha mão e me levou pela estrada, que agora florescia e crescia. Falou-me sobre os mistérios dos homens, e as certezas do paraíso.  Contou tudo o que sabia sobre as flores, as estrelas e a vida; e ora dizia que era uma princesa, ora que era fada. Por vezes, me olhava como uma garota, outras, falava-me como uma mulher. Certo dia, encontramos uma gigantesca e frondosa árvore.  Sua sombra era fresca; o verde de suas folhas, vívido; e grama que crescia ao seu redor, acolhedora. Ela, de súbito, me tirou para dançar, cantando uma melodia desconhecida. Ela acelerava e desacelerava quando bem entendia, e eu rodopiava em seus braços, e ela nos meus. Eu sentia sua pele, seu cheiro, e continuávamos a rodopiar perante a árvore, sem parar, cada vez mais rápido, e mais rápido... até que tropecei, e caí. Fiquei com as mãos enfiadas na terra úmida e viva. Ergui os olhos. Ela estava mais resplandecente do que nunca. Uma aura dourada (não era prateada?) emanava de sua cabeça; “um anjo”, pensei, “uma deusa”. Eu abri a boca para falar, mas um vento gelado invadiu-a, trancando as palavras na minha garganta. Eu me esforçava, mas meu corpo estava, literalmente, congelado. Minhas mãos estavam presas na terra, impossibilitando-me de levantar. O vento ficava cada vez mais forte, e mais frio; mas ela continuava olhando-me, sorrindo, resplandecente. O gelo subia por meus braços e pernas, transformando-me numa estátua, até que, juntando todo o calor e vida que ainda restava no meu amaldiçoado corpo, consegui sussurrar:
               
— Eu te amo — então congelei por completo, com as mãos cravadas na terra e um eco na garganta.
               
Ela limitou-se a dar uma risadinha, como tantas outras que já havia dado, mas, seus olhos... seus olhos haviam mudado, ou quase isso. Eles antes eram brilhantes e acolhedores, curiosos e inquietos, mas, agora, pareciam ser de vidro, frios e sem vida, e gigantescos, como os olhos de alguma fera monstruosa e faminta, dessas que se encontram nas histórias infantis. O gelo que me prendia trincou, nada além disso. Sua risada tornou-se uma gargalhada, depois um rugido.
“Meu brilho não é para você” foi tudo o que ela disse antes de irromper em chamas e desaparecer. O gelo por fim espatifou-se, e eu caí de cara na terra, antes úmida, agora seca e morna. Levantei-me com dificuldade e olhei em volta. Tudo estava pegando fogo; as flores, os arbustos, a árvore. Principalmente a árvore. O céu estava vermelho, e pássaros negros voavam... atiravam-se em todas as direções, fazendo muito barulho. Não havia por onde sair e para onde fugir. Eu queimaria ali, e, ao que parecia, eternamente. Rasguei versos e rimas na minha própria carne, na esperança de que ela sentisse o cheiro de sangue e voltasse, mesmo que fosse para acabar de uma vez comigo. Mas ela não vinha.  A poesia sangrava em mim, derramando tinta vermelha sobre as chamas. O fogo aproximava-se cada vez mais, e ela não apareceu; nunca apareceu. No fim das contas, nós sempre estamos sozinhos.


Para o garoto que vive de sorrisos, mas que pediu-me
para escrever sobre suas lágrimas;
Anderson