Um dia desses, arrumando meu quarto, encontrei uns livrinhos infantis que eu ganhei quando criança. Entre eles estava João e Maria, meu conto de fadas favorito. O que mais me encanta nessa história é fato de duas crianças — irmãs, o que só dificulta as coisas — se unirem para sobreviverem num ambiente hostil e assustador. Eles não precisam da ajuda de fadas ou coisas do tipo, simplesmente encaram os desafios e dificuldades que encontram no caminho, não importa se é uma floresta sombria ou uma bruxa filha da p... É por isso que decidi escrever uma nova versão dessa história, mostrando a visão que eu — agora um pouco mais crescidinho — tenho deste “conto de fadas” sem fadas.
A narrativa me dominou, e as coisas saíram de controle. Irei posta-la dividida em 3 partes, e espero, do fundo do coração, que ela consiga ser tão boa quanto o conto original.
Era uma vez...
ECOS NA NOITE
Sophie abriu os olhos assustada. Sua
respiração estava pesada, o corpo coberto de suor, e o coração palpitava
freneticamente, retumbando em seu peito. O silencio inundava a noite,
envolvendo a garota num absoluto vazio. Estrelas espreitavam-na por entre as altas
árvores. Gotas de luz num mar de escuridão. Tentando se acalmar, ela
questionou-se o que a havia acordado. Talvez tivesse sido apenas mais um dos
sonhos que vinha tendo desde o que
aconteceu na aldeia. Era frequente acordar no meio da noite chorando, e até
gritando; mas dessa vez não havia lágrimas em seu rosto, e a paz reinava na
noite escura e fria, até que um som chamou sua atenção, o som de folhas sendo
pisadas, e um vulto passou ao seu lado. Ela ergueu-se com um salto, agarrando o
punhal que carregava consigo, e apontando-o para todos os lados.
— Fique
quieta — disse um sussurro vindo com o vento. Ela abaixou a mão e caminhou em
direção a voz, cautelosa. O irmão estava encostado numa árvore, olhando para a
mata escura.
— O que
houve? — ela perguntou quando o alcançou.
— Ouvi alguma
coisa — sua voz era quase inaudível.
Os dois quase
não respiravam, esperando escutar ou ver algo, ficando assim durante um longo
tempo, e quando já estavam perdendo as esperanças, um ruído metálico chegou aos
seus ouvidos, sutil como uma brisa. Os irmãos se olharam, ela assustada, ele
pálido, então Kevin saiu de detrás da árvore e começou a caminhar em direção ao
som, cauteloso. A irmã olhou-o aterrorizada e incrédula, e, controlando-se para
não gritar, disse:
— O que você
vai fazer?
— Descobrir
de onde vem esse som — Kevin respondeu, sem olhar para trás.
— Isso é
loucura — rebatou ela, com a voz esganiçada.
O irmão não
falou mais nada, apenas continuou andando. Sophie olhou em volta, para a
escuridão que a cercava, saltou de detrás da árvore e correu atrás dele,
fazendo muito barulho. “Onde você pensa que vai?” ele perguntou virando-se para
ela, irritado.
— Vou com
você.
— Não, não
vai. Você vai ficar aqui e me esperar — Kevin disse, voltando a andar.
— Não vou
ficar aqui sozinha — ela disse, agarrando o braço do irmão.
Ele encarou-a
com olhos furiosos, iluminados pela fraca luz das estrelas, e disse, apontando
o dedo para o seu rosto:
— Se você
fizer algum barulho, por menor que seja, eu te mato.
— Não mata
não.
Eles
caminharam por sobre o chão da floresta como duas sombras, sem fazer nenhum
ruído. O barulho metálico voltou a reverberar por entre as árvores, mais alto
do que antes. Chegaram a uma pequena colina, e Kevin subiu na frente,
agachado, agarrando-se a raízes e pedras; Sophie veio logo atrás, seguindo o
rastro do irmão. À medida que subiam, outros sons chegavam aos seus ouvidos:
passos, o relinchar de cavalos, vozes, gargalhadas. Quando alcançaram o topo do
morro ficaram encolhidos atrás de um arbusto. Esticando a vista para baixo,
depararam-se com um acampamento. Uma fogueira ardia no centro dele, derramando
sua luz bruxuleante e alaranjada sobre tendas rústicas, cavalos e carroças. Alguns
homens bebiam e riam em torno do fogo, usando mantos de pele e carregando
espadas na cintura. Kevin e a irmã ficaram paralisados olhando para os
estranhos em torno da fogueira, até que alguma coisa no limite do acampamento chamou
a atenção do garoto. Ele apertou os olhos, focando numa carroça que não parecia
ter nada de diferente das outras, mas... ele enxergou uma pálida mão agarrada
as suas grades, e depois outra. Kevin forçou ainda mais a vista, então percebeu
que eram pessoas que estavam dentro dela. Embora não pudesse distinguir os
rostos envoltos em sombras, podia imaginar quem eram.
— São eles —
disse uma voz tremula ao seu lado.
Ele virou-se
para o lado e olhou para a irmã. Ela estava pálida e com os olhos vidrados,
agarrando-se com força aos galhos do arbusto. Kevin pegou a mão dela e
arrastou-se para trás, procurando ser o mais silencioso possível, mas, agora,
sua respiração lhe parecia ser tão sonora quanto um trovão. Os dois esgueiraram-se
pelas árvores, caminhando às cegas por entre troncos e raízes. Antes que
percebessem, já estavam correndo pela floresta afora, fugindo do acampamento e
dos homens que nele estavam. Galhos baixos aranhavam seus rostos, e pedras
soltas os ameaçavam com tropeções, mas eles não paravam. Por mais tortuoso que
parecesse o caminho, eles não podiam parar.
Lágrimas
corriam pelo rosto de Sophie, derramando-se sobre as folhas em decomposição.
Imagens da aldeia em chamas voltaram a sua cabeça, e ela quase podia sentir o
cheiro de madeira e carne queimando. A garota já não escutava o som de seus
passos, nem dos galhos quebrando sob os seus pés; o único som que reverberava
em sua cabeça eram os gritos da mãe, gritos de terror... e as gargalhadas.
Sophie achava que nunca conseguiria esquecer aquelas gargalhadas. Gargalhadas
diabólicas, de um prazer sádico. Provavelmente sua mãe era uma das prisioneiras
dos bárbaros agora, ou poderia ter tido o mesmo destino de seu pai. Ele havia
lutado para defender a aldeia, mas eles
o pegaram e... a fogueira...
Ela emergiu
de suas lembranças com o irmão balançando seu ombro. Sophie estava ajoelhada no
meio da estrada por onde tinham fugido da aldeia, com as mãos sobre a terra
nua, e uma poça de vômito na sua frente. Sua respiração estava irregular, o
peito queimava, e um gosto amargo fazia-se presente em sua boca. Ela ergueu a
cabeça para olhar o irmão. Ele carregava o machado que pegou antes de fugir da
aldeia. Havia medo em seus olhos, e lágrimas, que se negavam a correr sobre sua
pele pálida.
— Não podemos
ficar aqui. Eles vão nos encontrar. Eles têm cavalos. Precisamos sair da
estrada. Precisamos nos afastar o máximo possível. Vamos — Kevin disse,
arfando.
Sophie se
levantou, e limpou a boca com as costas da mão. Os dois caminharam juntos em
direção à floresta fechada do outro lado da estrada. Pararam na beira dela,
deram as mãos e adentraram-na, sentindo o cheiro das folhas mortas e a total
escuridão rodeando-os.
(continua)
3 comentários:
Não demora muito para postar a continuação, Ok? rss
Muito bom.
www.cchamun.blogspot.com.br
Histórias, estórias e outras polêmicas
Pode deixar, Claudio. A segunda parte sai ainda esta semana.
Gostei muito, adoro releituras.
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