A BRUXA
Um cheiro doce
invadia a narinas de Kevin, e seus olhos estavam pesados e cheios de areia. Ele
olhou em volta e percebeu que estava num suntuoso quarto, deitado numa cama de
dossel com cortinas azuis. Tentou levantar-se, mas uma fisgada na nuca o forçou
a parar. Olhou mais uma vez em volta, procurando pela irmã, mas não encontrou
sinal dela no espaçoso cômodo. Um ronco vindo de sua barriga lembrou-lhe que
ele não comia havia... há quanto tempo
estou deitado aqui? Ele mais uma vez tentou levantar, resistindo com todas
as forças às dores que sentia. Caminhou até uma mesinha próxima a cama, onde
encontrou pão, queijo, figos e uma jarra de leite. Kevin comeu tudo com tanta
pressa que quase colocou tudo para fora, mas, depois de vencer as ânsias de
vômito, sentiu-se melhor. As dores no corpo já começavam a diminuir, e o
estômago não lhe soava tão feroz.
Uma grande janela em forma de arco
subia do chão ao teto, permitindo a entrada dos quentes e aconchegantes raios
do sol. Lá fora um vasto jardim estendia-se em todas as direções, com flores de
todos os tipos e formatos, e pontilhado aqui e ali por fontes ou árvores
frutíferas. Imagens da floresta assombrada voltaram subitamente a sua cabeça,
fazendo-o sentir qualquer coisa gelada subir pela espinha. Um temor avassalador
tomou seus pensamentos, fazendo-o questionar-se onde estava a irmã e como havia
chegado ali. Ele caminhou rapidamente para a porta, abrindo-a de supetão e
despontando num largo corredor repleto de tapeçarias. Kevin passou por inúmeras
portas, andando cada vez mais rápido e chamando pelo nome da irmã, mas a única
resposta era o eco dos seus passos e sussurros distantes que diziam “Sophie, Soph, So...”. Quando ele estava
começando a achar que aquele corredor não tinha mais fim, deparou-se com uma
escada em caracol que descia para sabe-se lá onde.
O garoto
desceu com passos cautelosos, apurando os ouvidos, mas não se escutava nada.
Até os ecos haviam lhe abandonado. A
escada dava num vasto salão que parecia ser inteiramente feito totalmente de
ônix e ouro. Kevin ficou totalmente boquiaberto com aquela visão, pois nunca
havia visto nada parecido com aquilo. Ele já tinha esquecido totalmente o que
estava fazendo, quando o som de risos chegou aos seus ouvidos. O garoto correu
pelo salão, cada passo soando como um trovão. Ali também havia inúmeras portas,
mas havia uma entreaberta, e ele esgueirou-se por ela. Kevin encontrou a irmã
sentada num grande sofá, numa vasta sala arejada, conversando com uma mulher vestida
dos pés à cabeça de rosa e púrpura, com cabelos roxos que se amontoavam num
rabo de cavalo no topo da sua cabeça, descendo até a cintura. No momento em que
Sophie avistou o irmão, saltou sobre ele e abraçou-o forte. As dores ainda
incomodavam Kevin, mas ele retribuiu o abraço com todo o calor possível.
— Pensei que
você nunca mais iria acordar — ela disse, soltando o irmão e olhando-o com os
olhos cheios de lágrimas.
— Por quanto
tempo eu dormi?
— Quatro dias
— a voz da garota falhou.
— Não fique
assim, já estou melhor agora. Que lugar é esse? — ele perguntou com um
sussurro, olhando de relance para a mulher de cabelos roxos, que o olhava com
um sorriso e levantava-se do sofá.
— Este é o
palácio de Lady Liana. Foi ela que nos salvou na floresta. Se não fosse por
ela...
— Como a
senhora conseguiu espantar as árvores? — Kevin perguntou abruptamente para a
mulher que estava em pé ao lado da irmã.
— Não foram
as árvores que atacaram vocês, e sim as aranhas-cantantes. O veneno delas é
muito poderoso, e é capaz de causar alucinações.
— Aranhas? Não foram aranhas que nos atacaram,
foram árvores. Eu senti as raízes me prendendo...
— Tudo não
passou de uma alucinação.
Kevin olhou
para a irmã, esperando que ela contasse para a mulher o que havia acontecido,
mas Sophie parecia acreditar na história da estranha. Lady Liana percebeu a
incredulidade do garoto, e continuou:
— Encontrei
sua irmã gritando e esperneando, e você quase morto. As aranhas tem medo do
fogo, por isso fugiram de mim. Você levou muitas picadas, e pensei que não
fosse sobreviver, mas, ao que parece, você é um rapaz forte.
— Picadas?
Não me... — foi quando Kevin olhou para o próprio braço e encontrou uma
infinidade de pontinhos vermelhos espalhados aos pares sobre ele. O garoto
ergueu olhos esbugalhados para a mulher, que retribuiu com um sorriso fraternal.
— Obrigado por me salvar Lady Liana... a mim e a minha irmã — agradeceu o garoto, acanhado.
— O que
importa é que você está bem. Os dois estão bem — disse ela por fim, colocando
um braço em volta de uma Sophie alegre e sorridente.
— Não confio
nesta mulher — disse Kevin à irmã quando os dois estavam passeando pelos vastos
jardins.
— Você
deveria estar grato. Foi ela que salvou nossas vidas — a garota rebateu,
fazendo cara de brava.
— Eu estou
grato, mas não confio nela — ele parou para olhar a estátua de um fauno. Seus
olhos eram duros e penetrantes, e Kevin teve a impressão de que a criatura o
encarava. Desviando rapidamente o olhar, ele continuou sua caminhada. —
Deveríamos ir embora.
— Você está
louco?! — dessa vez foi Sophie que parou de caminhar. — Nós temos tudo o que
precisamos aqui, e Lady Liana disse que poderíamos ficar o tempo que
quiséssemos.
— Não podemos
ficar aqui Sophie. Precisamos encontrar nossa mãe, ou pelo menos descobrir o
que aconteceu com ela.
A garota
olhou para o chão, e assim ficou durante um longo tempo, então falou, com uma
voz que se perdia no vento:
— Você tem
razão. Durante o jantar falarei com a Lady, e direi que iremos embora amanhã.
Mas Sophie
nem chegou a jantar. Assim que o sol se pôs, uma súbita febre atacou-a, deixando
a garota acamada. Quando Kevin recebeu a notícia, correu para o quarto da irmã,
e entrou gritando “O que ela fez com você?!”, mas ela não parecia estar
escutando. Sua pele estava pálida, e veias roxas eram visíveis em seu pescoço.
— Foi o
veneno das aranhas. Talvez ele não tenha sido totalmente expurgado do corpo da
sua irmã — disse Lady Liana, saindo das sombras calmamente.
— O que você
fez com minha irmã? — perguntou o garoto, exaltado. — O QUE VOCÊ FEZ COM ELA?
DIGA! — a voz dele trovejava, mas Liana continuava indiferente.
— Você não
deveria sair por aí acusando as pessoas sem provas.
— Você não me
engana. Eu sei que aquelas árvores eram verdadeiras, e era você que as
controlava! Foi você que colocou aquelas marcas na minha pele, e quando
descobriu que nós iriamos embora, deixou minha irmã desse jeito. O que você quer de nós?!
Lady Liana —
ou seja lá quem ela fosse — deu alguns passos para a frente, com os longos
cabelos roxos espalhando-se atrás de si. Um sorriso sutil e cruel brotou em
seus lábios. Kevin sentiu o chão sumir sob seus pés enquanto a bruxa andava em
sua direção, e mais uma vez os sussurros da floresta assombrada soaram em seus
ouvidos. Um cheiro doce e inebriante emanava dela.
— A vida é
muito preciosa para ser desperdiçada com criaturas como vocês.
Kevin não se
lembrava de ter fechado os olhos, mas, mesmo assim, abriu-os. Uma cortina azul
cercava-o, filtrando a luz do sol. Ele levantou-se e olhou em volta. Tudo
estava em perfeita ordem, não fosse por sua cabeça, que nunca esteve tão
pesada. O garoto tinha a impressão de que estava esquecendo alguma coisa, até
que se lembrou da irmã e da bruxa. Correu desesperado para a porta, mas estava
trancada. Jogou-se contra ela algumas vezes, sem conseguir resultado algum.
Procurou o machado para arrombar a fechadura. Não o encontrou. Lembrou-se da
janela. Chegando nela, olhou para baixo através do vidro grosso. A altura até o
chão era bem grande, mas ele achava que seria capaz de escalar a parede. No
entanto, ela também estava trancada. Correu o olhar pelo quarto procurando uma
maneira de fugir dali, e deparou-se com a mesinha ao pé da cama. Agarrou-a
pelos pés e jogou-a com toda a força contra o vidro, que se espatifou em
milhares de cacos afiados. Kevin pulou o parapeito da sacada e começou a descer
o muro segurando-se nas brechas entre as pedras. Quando estava a cerca de dois
metros do chão, saltou e caiu em cima de um arbusto.
Ele caminhou em torno do palácio
procurando uma entrada, mas todas estavam trancadas. Foi só depois de muito
tempo que encontrou uma porta velha e rachada de dava num cômodo empoeirado.
Saiu por outra porta para um corredor estreito e sinuoso. Deste corredor entrou
em outro, e depois outro. Perto da estátua de uma velha corcunda encontrou uma
escada com os degraus gastos. Desceu-os saltando de dois em dois, sem se
importar com barulho que fazia. Um cheiro doce subia das profundezas, enchendo
a escuridão com um ar denso e inebriante. Ecos ressoavam nas paredes gastas e
chegavam-lhe aos ouvidos. Vozes, suspiros, e outros sons indistinguíveis. A escada
terminava numa câmara circular e rodeada de tochas. Arcos escuros abriam-se em
toda a extensão da parede curva, dando a impressão de que sombras o observavam
e iriam atacá-lo sem o menor aviso. Vozes pareciam vir de todos os lugares,
enchendo o espaço cavernoso com os brados de uma multidão.
Kevin correu colado à parede,
esperando descobrir onde estariam a bruxa e a irmã. Quando passava por um dos
portais, uma lufada de ar quente e doce envolveu-o. Ele entrou tateando no
corredor escuro, sentido sob suas mãos pedras ásperas e úmidas. Virou à
direita, depois à esquerda, e mais uma vez para esquerda. Uma sutil luz dourada
emanava de uma porta entreaberta no fim do corredor; ele caminhou até ela com
passos leves e silenciosos, abrindo-a com todo o cuidado possível, mas, mesmo
assim, um rangido alto denunciou sua presença. Liana ergueu a cabeça, revelando
pupilas dilatas e sangue escorrendo por sua boca e queixo, dando-lhe a
aparência de um animal feroz e roxo. Ela lançou ao garoto um olhar apático e
desdenhoso, e um sorriso cheio de dentes abriu-se em seu rosto.
— Você demorou. Eu já estava me
perguntando se alguma das minhas estátuas tinha lhe feito algo — a voz da bruxa
soava assustadoramente alta naquela sala. — Veio buscar sua irmã? Só espere eu
acabar e ela será toda sua.
Sophie repousava nua sobre uma mesa
alta e estreita. Pequenos cortes abriam-se em seu ventre, garganta e pulsos,
derramando finos fios de sangue sobre a pele pálida, num assustador contraste
de vermelho e branco. Ela ainda respirava, mas com muita dificuldade. O machado
de Kevin e o punhal da irmã estavam sobre uma pequena mesa cheia de velas do
outro lado do cômodo. Ele começou a caminhar até lá calmamente, encarando a
bruxa.
— O que você quer dela? — Kevin fez
toda a força para parecer calmo, mas sua voz trêmula o denunciava. Ele só
esperava que a bruxa não fosse capaz de ler mentes.
— Eu já te disse, queridinho. Quero
apenas a sua vida. Nada além da sua vida
— a última palavra saiu mais parecida com um silvo do que com uma voz humana.
— O que você quer é vida? Então venha
pega-la — o garoto pegou o punhal sobre a mesa e fez comprido corte no seu
braço esquerdo, largando a arma em seguida. Ela caiu no chão, enchendo a sala
com som de metal contra pedra. — Venha, pode beber. Sou muito mais forte do que
ela. Existe muito mais vida em mim do que nela. Venha. Beba — ele estendeu o braço cortado em direção à bruxa.
Liana caminhou até ele trôpega, suas
narinas arreganhando-se. Agarrando o braço dele com as duas mãos, ela bebeu o
sangue avidamente. Um prazer supremo tomava o corpo da bruxa enquanto ela
sugava o líquido quente do garoto, e nem reparou quando ele puxou um caco de
vidro que trazia escondido na cintura. Kevin enfiou o caco afiado na barriga
dela com toda a força, até não poder mais. Liana largou-o e andou para trás,
olhando para o sangue que jorrava de sua barriga. Ela ergueu o olhar para o
garoto, escancarou a boca e soltou uma gargalhada tão profunda e poderosa que
fez o coração dele parar, e seu corpo todo gelou. Liana arrancou o caco de vidro
e espatifou-o na palma da mão. Seu olhar havia se tornado ainda mais feroz. Não
existia mais nada de humano nela.
— Garoto idiota! Você achou que seria
capaz de me matar? — ela lhe deu uma tapa tão forte que Kevin voou sobre a mesa
cheia de tocos de velas às suas costas. Ela espatifou-se sob seu peso, atirando
lascas de madeira e cera quente em todas as direções. A bruxa debruçou-se sobre
o garoto, derramando sobre ele seu característico cheiro doce. — Eu fui muito
boa até agora, livrando-lhe de ver sua irmã morrer lentamente, mas você não me
dá escolha. Você irá escutar cada grito de dor e desespero dela, verá seu corpo
contorcer-se de agonia e presenciará a vida deixando-a — sobre a mesa, Sophie
acordou com um suspiro, começando a gritar e a chorar quase que imediatamente.
Kevin olhou a bruxa nos olhos. Todo o
medo havia abandonado o garoto, e um ódio abrasador queimava suas entranhas.
— Eu acho que não — ele ergueu o
machado, que caíra próximo de sua mão, com a velocidade de raio, partindo ao
meio o pescoço da bruxa com um único golpe. A cabeça cheia de cabelos roxos
tombou para o lado com um baque seco, e o corpo de Liana desabou para trás.
Kevin largou a arma e correu até a
irmã, que chorava copiosamente sobre a mesa. Ele passou a mão nos seus cabelos
e sorriu para ela. Sophie retribuiu o sorriso entre soluços, ainda com os olhos
cheios de lágrimas.
— Tudo vai ficar bem agora — ele
disse, também chorando. — Acabou.
5 comentários:
Acabou nada!
Eles ainda têm que procurar a mãe.
O que tu estás esperando?
Ajude os garotos a encontrá-la.
www.cchamun.blogspot.com.br
Histórias, estórias e outras polêmicas
Também acho que você deve continuar.
Vou tentar (mas não garanto nada)
Continue sim! ;)
Pedro:
Tu consegues cara!
Talento te sobra.
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