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quarta-feira, 10 de outubro de 2012

O PASTOR E A SEREIA




Conta-se que há muito, muito tempo atrás, existiu, numa terra fértil e verdejante, uma aldeia onde os seus moradores viviam em perfeita paz e harmonia. Todos respeitavam uns aos outros, e tratavam-se com uma incrível cordialidade. Os homens trabalhavam, os velhos aconselhavam, as crianças brincavam, as mulheres cuidavam de suas casas, e assim, dia após dia, a aldeia seguia na mais pura serenidade. Mas não é a história desta aldeia, nem do povo que lá vivia, que venho aqui contar, e sim a de um de seus moradores, talvez dois. Vivia nesta terra um rapaz chamado Jon. Ele era um pastor, e, como tal, passava muitas horas sozinho nos prados que circundavam a aldeia, o que lhe dava tempo para pensar em certas coisas que os padeiros, açougueiros e ferreiros do seu povo não pensavam. Por que o céu é azul? E, se grama cresce assim como o cabelo, seria ela o cabelo da terra?  Esses eram apenas alguns dos questionamentos de Jon, com os quais ele gastava uma parcela do seu tempo, no entanto, a maior parte dele, ele passava pensava em apenas uma coisa, ou melhor, uma pessoa. Suzana, a filha do chefe da aldeia. Ela era a criatura mais bela que ele já havia visto. Seus cabelos cor de fogo, sua delicada boca, sua voz doce e melodiosa, Jon não sabia qual desses atributos o encantava mais. Todas as vezes em que ele a via, sentia seu coração acelerar, a barriga gelar e boca secar. É amor. Ele encontrara essa palavra — amor — num livro que contava a história de uma rainha que se apaixonara pelo irmão de seu marido. Entre uma das muitas páginas do livro, estava escrito “Amor é a doença que nos faz rir sem motivo, suspirar quando não estamos sentindo dor e da qual ninguém quer curar-se.” Jon não conhecia direito essas coisas de amor, mas sabia que estava amando.
                Ele também escrevia poesias quando estava sozinho nos campos vizinhos à aldeia. Nove em cada dez falavam de Suzana, e a que sobrava era dedicada às suas ovelhas, ou ao céu azul, ou à grama, que na verdade era o cabelo da terra, ou às árvores... Um dia, tomado por uma valentia súbita — e inspirado pelos corajosos heróis dos livros que lia —, ele decidiu mostrar seus textos para Suzana, e contar-lhe que a amava. Prometeu-lhe o céu, e as estrelas que nele estavam. Prometeu matar um gigante, e trazer-lhe a cabeça do mostro como uma prova do seu amor. Prometeu essas e muitas outras coisas, assim como faziam os cavalheiros de suas histórias. Só que alguém se esqueceu de lhe avisar que o mundo não é feito de papel e tinta. Suzana leu seus poemas, e gostou bastante de alguns deles. Entregou-os de volta para Jon, e, com uma expressão bondosa e uma sugestão de compaixão nos olhos, disse, com sua voz melodiosa: “Você é um rapaz maravilhoso, Jon, e seus poemas são lindos. Estou muito grata por você ter escrito coisas tão maravilhosas para mim, mas... eu não lhe amo.” O rapaz não se lembrava do que fez depois de ouvir essas palavras, mas quando deu por si, estava chorando às margens de um lago que ficava próximo à aldeia, e suas poesias estavam flutuando nas águas plácidas à sua frente, com a tinta sumindo do papel. Ele ficou observando seus sonhos boiando para longe, enquanto lágrimas mornas corriam por seu rosto e misturavam-se com a água doce do lago, até que, no meio dele, surgiu uma mulher, que veio caminhando sobre a superfície espelhada até parar na sua frente. Ela trajava um vestido de renda verde e dourada, e sedosos cabelos prateados escorriam por seus ombros e costas, misturando-se na água sob seus pés. Jon ficou encantado com aquela mulher, e não conseguia encontrar palavra para lhe dizer. Ela o olhava de cima, com brilhantes olhos azuis, nos quais orbitava curiosidade e mistério.
                “Por que choras, rapaz?” perguntou ela com uma voz que parecia o coro de dois mil anjos. Jon ficou extasiado, e complicou-se na hora de responder. “Eu... é... ela não... a Suzana...” A mulher misteriosa interrompeu-o antes que ele pudesse dizer qualquer coisa que pudesse fazer sentido. “Não chores mais por Suzana, Jon. Ela não é capaz de enxerga-lo, nem se quisesse.”
                Não é capaz de me enxergar? Como assim? E como ela sabe o meu nome?
                — Não se assuste Jon, não vim lhe fazer mal. Meu nome é Miriam, e sou a rainha do Mundo Azul. Há muito tempo venho procurando entre meu povo alguém que possa governar o reino ao meu lado, mas não achava entre meu povo ninguém apropriado para ser meu marido, até que me deparei com você chorando à beira do meu lago. Acho que encontrei um candidato para rei do Mundo Azul — disse ela por fim, com um sorriso acolhedor.
                — Candidato? O que você está querendo...
                — Você, Jon. Você será rei ao meu lado, e juntos governaremos o Mundo Azul.
                — Eu? Você... Perdão! A senhora deve estar enganada. Eu sou apenas um pastor, um homem...
                — Que não é como os outros homens — completou ela. — Você pensa com o coração, Jon. Você questiona-se sobre coisas que os outros homens, do meu e do seu povo, sequer pensam. Você procura entender o mundo ao seu redor, na esperança de vivenciá-lo e, até, muda-lo. Você não é como os outros homens.
                — Como a senhora...
                — Eu sei de tudo o que acontece abaixo e acima das águas deste lago. Então, Jon, você aceita casar-se comigo e ser rei do Mundo Azul?
                Ele levantou-se e limpou a lama dos joelhos. Jon não percebeu, mas havia parado de chorar. Olhou para traz, na direção da aldeia, mas só enxergou as altas árvores anciãs que se interpunham entre ela e o lago. Virou a cabeça e fitou Miriam nos olhos, na esperança de encontrar algum significado oculto em sua proposta, mas só encontrou sinceridade, e magia.
                — Sim, eu aceito — disse ele por fim, com voz decidida.
                — Ótima escolha. Mas tem uma condição — “Sempre tem, não é?” ele pensou. — Você nunca mais deverá ver Suzana, caso contrário irá se transformar num corvo. No lugar de seus braços e mãos, terá asas negras como a noite, e, em vez de uma voz humana, terá um crocitar estridente e sem sentido. Você concorda?
                “Sim” respondeu Jon, sem pensar duas vezes. “Então vamos indo. Quero que todos conheçam você” disse Miriam, com um sorriso quase inocente. Os dois então submergiram nas águas do lago, deixando Suzana e toda a aldeia para traz, indo rumo ao Mundo Azul.
                O reinado de Miriam e Jon foi um dos mais prósperos de que se tem notícia, e o povo nunca esteve tão feliz. Os habitantes do reino das águas veneravam-nos, e eles retribuíam com bondade e justiça.  Tiveram três filhos — Lua, Karina e Briam — que eram tão amados por seus pais quanto se pode ser. Foram sete anos de pura alegria. Sim, sete anos, pois não passou disso. Certo dia, Jon estava passeando pelos terraços do seu castelo submerso, quando percebeu uma agitação na superfície. Ele subiu para ver o que era, e quando chegou lá se deparou com uma mulher se afogando. Ele correu (nadou) para ajuda-la. Agarrou seu corpo e levou-a para a margem com toda a rapidez possível, e, quando deitou a mulher desacordada na terra úmida, percebeu que era Suzana. Antes que se desse conta do que estava acontecendo, penas negras já começavam a cobrir todo o seu corpo, e asas brotavam dolorosamente de suas costas. Ele não chorou nem gritou, apenas olhou para o lago. Não havia ninguém sobre suas águas. Não havia ninguém para socorrê-lo dessa vez. Quando Suzana acordou, encontrou apenas um corvo que a olhava com miúdos olhos negros.
                Suzana caminhou aos tombos para a aldeia, e lá foi amparada por seus vizinhos. Ela lhes contou a história de como havia se afogado quando uma das roupas que lavava havia flutuado para longe, e ela foi atrás, busca-la; e de como havia acordado misteriosamente na margem, sã e salva. Ela nem se deu ao trabalho de citar o corvo, o mesmo corvo que agora estava empoleirado na janela de sua casa. Jon adotou aquela janela como sua morada, saindo de lá apenas para comer. Ele viu através do vidro os cinco filhos de Suzana e seu marido, o grande e gordo Roger, dono da taberna. Ele viu a mulher que um dia amou atarefada com os trabalhos do lar. Viu-a gritar com os filhos, e apanhar do marido quando lhe serviu a sopa fria. Viu-a chorar enquanto limpava os restos de sopa do chão e mentir para seu irmão, que havia ido visita-la, dizendo que tropeçou numa cadeira e caiu de cara na quina da mesa. Ele viu o céu nublado, e pensou que ele, visto de debaixo d’água, é muito mais azul.

3 comentários:

Anderson Brito disse...

Belo...
Magnifico...
Esplendido...
Sem palavras...
Você soube traduzir cada palavra, cada visão do mundo real para o seu mundo. Adorei o conto, a subjetividade tornavam-se objetividade e encanto a cada momento que eu lia. Valeu mesmo...
Obrigado pelo texto

Claudio Chamun disse...

Muito bom!

Pedro Lourenço disse...

Obrigado pessoas!