Conta-se que há muito, muito
tempo atrás, existiu, numa terra fértil e verdejante, uma aldeia onde os seus
moradores viviam em perfeita paz e harmonia. Todos respeitavam uns aos outros,
e tratavam-se com uma incrível cordialidade. Os homens trabalhavam, os velhos
aconselhavam, as crianças brincavam, as mulheres cuidavam de suas casas, e
assim, dia após dia, a aldeia seguia na mais pura serenidade. Mas não é a
história desta aldeia, nem do povo que lá vivia, que venho aqui contar, e sim a
de um de seus moradores, talvez dois. Vivia nesta terra um rapaz chamado Jon.
Ele era um pastor, e, como tal, passava muitas horas sozinho nos prados que
circundavam a aldeia, o que lhe dava tempo para pensar em certas coisas que os
padeiros, açougueiros e ferreiros do seu povo não pensavam. Por que o céu é azul? E, se grama cresce
assim como o cabelo, seria ela o cabelo da terra? Esses eram apenas alguns dos questionamentos
de Jon, com os quais ele gastava uma parcela do seu tempo, no entanto, a maior
parte dele, ele passava pensava em apenas uma coisa, ou melhor, uma pessoa. Suzana, a filha do chefe da aldeia. Ela
era a criatura mais bela que ele já havia visto. Seus cabelos cor de fogo, sua
delicada boca, sua voz doce e melodiosa, Jon não sabia qual desses atributos o
encantava mais. Todas as vezes em que ele a via, sentia seu coração acelerar, a
barriga gelar e boca secar. É amor.
Ele encontrara essa palavra — amor — num livro que contava a história de uma
rainha que se apaixonara pelo irmão de seu marido. Entre uma das muitas páginas
do livro, estava escrito “Amor é a doença que nos faz rir sem motivo, suspirar
quando não estamos sentindo dor e da qual ninguém quer curar-se.” Jon não
conhecia direito essas coisas de amor, mas sabia que estava amando.
Ele também
escrevia poesias quando estava sozinho nos campos vizinhos à aldeia. Nove em
cada dez falavam de Suzana, e a que sobrava era dedicada às suas ovelhas, ou ao
céu azul, ou à grama, que na verdade era o cabelo da terra, ou às árvores... Um
dia, tomado por uma valentia súbita — e inspirado pelos corajosos heróis dos
livros que lia —, ele decidiu mostrar seus textos para Suzana, e contar-lhe que
a amava. Prometeu-lhe o céu, e as estrelas que nele estavam. Prometeu matar um
gigante, e trazer-lhe a cabeça do mostro como uma prova do seu amor. Prometeu
essas e muitas outras coisas, assim como faziam os cavalheiros de suas
histórias. Só que alguém se esqueceu de lhe avisar que o mundo não é feito de
papel e tinta. Suzana leu seus poemas, e gostou bastante de alguns deles.
Entregou-os de volta para Jon, e, com uma expressão bondosa e uma sugestão de
compaixão nos olhos, disse, com sua voz melodiosa: “Você é um rapaz maravilhoso,
Jon, e seus poemas são lindos. Estou muito grata por você ter escrito coisas
tão maravilhosas para mim, mas... eu não lhe amo.” O rapaz não se lembrava do
que fez depois de ouvir essas palavras, mas quando deu por si, estava chorando
às margens de um lago que ficava próximo à aldeia, e suas poesias estavam
flutuando nas águas plácidas à sua frente, com a tinta sumindo do papel. Ele
ficou observando seus sonhos boiando para longe, enquanto lágrimas mornas
corriam por seu rosto e misturavam-se com a água doce do lago, até que, no meio
dele, surgiu uma mulher, que veio caminhando sobre a superfície espelhada até
parar na sua frente. Ela trajava um vestido de renda verde e dourada, e sedosos
cabelos prateados escorriam por seus ombros e costas, misturando-se na água sob
seus pés. Jon ficou encantado com aquela mulher, e não conseguia encontrar
palavra para lhe dizer. Ela o olhava de cima, com brilhantes olhos azuis, nos
quais orbitava curiosidade e mistério.
“Por que
choras, rapaz?” perguntou ela com uma voz que parecia o coro de dois mil anjos.
Jon ficou extasiado, e complicou-se na hora de responder. “Eu... é... ela
não... a Suzana...” A mulher misteriosa interrompeu-o antes que ele pudesse
dizer qualquer coisa que pudesse fazer sentido. “Não chores mais por Suzana,
Jon. Ela não é capaz de enxerga-lo, nem se quisesse.”
Não é capaz de me enxergar? Como assim? E
como ela sabe o meu nome?
— Não se
assuste Jon, não vim lhe fazer mal. Meu nome é Miriam, e sou a rainha do Mundo
Azul. Há muito tempo venho procurando entre meu povo alguém que possa governar
o reino ao meu lado, mas não achava entre meu povo ninguém apropriado para ser
meu marido, até que me deparei com você chorando à beira do meu lago. Acho que
encontrei um candidato para rei do Mundo Azul — disse ela por fim, com um
sorriso acolhedor.
— Candidato?
O que você está querendo...
— Você, Jon.
Você será rei ao meu lado, e juntos governaremos o Mundo Azul.
— Eu? Você...
Perdão! A senhora deve estar
enganada. Eu sou apenas um pastor, um homem...
— Que não é
como os outros homens — completou ela. — Você pensa com o coração, Jon. Você
questiona-se sobre coisas que os outros homens, do meu e do seu povo, sequer
pensam. Você procura entender o mundo ao seu redor, na esperança de vivenciá-lo
e, até, muda-lo. Você não é como os outros homens.
— Como a senhora...
— Eu sei de
tudo o que acontece abaixo e acima das águas deste lago. Então, Jon, você
aceita casar-se comigo e ser rei do Mundo Azul?
Ele
levantou-se e limpou a lama dos joelhos. Jon não percebeu, mas havia parado de
chorar. Olhou para traz, na direção da aldeia, mas só enxergou as altas árvores
anciãs que se interpunham entre ela e o lago. Virou a cabeça e fitou Miriam nos
olhos, na esperança de encontrar algum significado oculto em sua proposta, mas
só encontrou sinceridade, e magia.
— Sim, eu
aceito — disse ele por fim, com voz decidida.
— Ótima
escolha. Mas tem uma condição — “Sempre
tem, não é?” ele pensou. — Você nunca mais deverá ver Suzana, caso
contrário irá se transformar num corvo. No lugar de seus braços e mãos, terá
asas negras como a noite, e, em vez de uma voz humana, terá um crocitar
estridente e sem sentido. Você concorda?
“Sim”
respondeu Jon, sem pensar duas vezes. “Então vamos indo. Quero que todos
conheçam você” disse Miriam, com um sorriso quase
inocente. Os dois então submergiram nas águas do lago, deixando Suzana e toda a
aldeia para traz, indo rumo ao Mundo Azul.
O reinado de
Miriam e Jon foi um dos mais prósperos de que se tem notícia, e o povo nunca
esteve tão feliz. Os habitantes do reino das águas veneravam-nos, e eles retribuíam
com bondade e justiça. Tiveram três
filhos — Lua, Karina e Briam — que eram tão amados por seus pais quanto se pode
ser. Foram sete anos de pura alegria. Sim, sete
anos, pois não passou disso. Certo dia, Jon estava passeando pelos terraços
do seu castelo submerso, quando percebeu uma agitação na superfície. Ele subiu
para ver o que era, e quando chegou lá se deparou com uma mulher se afogando.
Ele correu (nadou) para ajuda-la. Agarrou seu corpo e levou-a para a margem com
toda a rapidez possível, e, quando deitou a mulher desacordada na terra úmida,
percebeu que era Suzana. Antes que se desse conta do que estava acontecendo,
penas negras já começavam a cobrir todo o seu corpo, e asas brotavam
dolorosamente de suas costas. Ele não chorou nem gritou, apenas olhou para o
lago. Não havia ninguém sobre suas águas. Não havia ninguém para socorrê-lo
dessa vez. Quando Suzana acordou, encontrou apenas um corvo que a olhava com
miúdos olhos negros.
Suzana
caminhou aos tombos para a aldeia, e lá foi amparada por seus vizinhos. Ela
lhes contou a história de como havia se afogado quando uma das roupas que
lavava havia flutuado para longe, e ela foi atrás, busca-la; e de como havia
acordado misteriosamente na margem, sã e salva. Ela nem se deu ao trabalho de
citar o corvo, o mesmo corvo que agora estava empoleirado na janela de sua
casa. Jon adotou aquela janela como sua morada, saindo de lá apenas para comer.
Ele viu através do vidro os cinco filhos de Suzana e seu marido, o grande e
gordo Roger, dono da taberna. Ele viu a mulher que um dia amou atarefada com os
trabalhos do lar. Viu-a gritar com os filhos, e apanhar do marido quando lhe
serviu a sopa fria. Viu-a chorar enquanto limpava os restos de sopa do chão e
mentir para seu irmão, que havia ido visita-la, dizendo que tropeçou numa
cadeira e caiu de cara na quina da mesa. Ele viu o céu nublado, e pensou que
ele, visto de debaixo d’água, é muito mais azul.
3 comentários:
Belo...
Magnifico...
Esplendido...
Sem palavras...
Você soube traduzir cada palavra, cada visão do mundo real para o seu mundo. Adorei o conto, a subjetividade tornavam-se objetividade e encanto a cada momento que eu lia. Valeu mesmo...
Obrigado pelo texto
Muito bom!
Obrigado pessoas!
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