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quarta-feira, 19 de setembro de 2012

OS OLHOS DA FLOR - parte 3




                O casamento foi em Alvo Campo, pouco tempo depois do funeral do Rei Leon, que morreu enquanto Alejandro estava em Brumário. A Catedral de Santa Maria de Perva estava completamente cheia, e uma incessante tempestade de neve caia do lado de fora, dando um ar cinza e gélido a tudo. O rei, pai de Liz, não pôde ir ao casamento, pois não estava se sentindo muito bem e uma viagem naquela temperatura poderia ser fatal. A princesa estava totalmente desconsolada e nem se dava ao trabalho de esconder as lágrimas que vinham aos borbotões. E todos na catedral pareciam compartilhar da tristeza de Liz, pois não havia riso, gargalhada ou alegria em lugar algum. Todos pareciam padecer junto à princesa. “Era para José estar aqui, no seu lugar” Pensou a princesa olhando para Alejandro. A coroação foi logo após o matrimônio, dando a impressão à Liz de que aquele dia nunca acabaria. Ela queria voltar para casa, reencontrar José e nunca mais se afastar dele. Esses pensamentos a fizeram chorar ainda mais, chamando a atenção de todos os presentes na cerimônia. Alejandro, longe da vista de todos, apertou o braço dela com força e sussurrou no seu ouvido com uma voz tão doce quanto venenosa:
                — Pare de chorar agora.
                — Você está me machucando.
                — Agora — disse ele, apertando ainda mais forte.
                Liz engoliu as lágrimas e permaneceu calada até o fim da cerimônia, quando o arcebispo colocou uma coroa de brilhantes em sua cabeça, que parecia pesar tanto quanto uma montanha. “Eu nunca pedi esta merda, por que tenho que usa-la?” Era o que uma Liz furiosa pensava enquanto eram proferidas as últimas palavras da coroação. Ela e Alejandro saíram da catedral de braços dados, sendo ovacionados pelos presentes, enquanto do lado de fora uma suntuosa carruagem os aguardava em meio à tempestade de neve. Ela entrou rapidamente para proteger-se do vento, enquanto o príncipe — agora rei — veio logo atrás. Mal se fechou a porta, ele começou a falar:
                — Não gostei nem um pouco do seu comportamento na cerimônia.
                — Que comportamento, meu senhor?
                — O seu choro! Você não parou um segundo; parecia que não queria estar lá.
                “E não queria mesmo”.
                — Não foi nada disso meu senhor. É que eu estava pensando no meu pai, eu gostaria muito que ele...
                — Você é minha esposa agora, não há porque ficar chorando o tempo todo. O que os outros vão pensar? Que você é infeliz, que eu lhe trato mal. Não quero que esse comportamento se repita, está entendido?
                — Sim senhor.
                — Vamos, sorria! Por que você nunca sorri? Você é uma rainha agora, deveria estar feliz com isso. Em breve a coroa de Brumário também será nossa. Mostre-se agradecida pelo menos.
                “Sabe onde é que você enfia a sua maldita coroa?”
                — Não é nada meu senhor, é que eu não consigo tirar meu pai da cabeça.
                — Trate de tirar logo. Já estamos chegando ao castelo e daqui a pouco começará o baile. Não quero ver você chorando.
                — Claro senhor.
                E assim continuou a viagem até o castelo, onde o baile transcorreu sem maiores incidentes. Liz se esforçou ao máximo para parecer estar feliz, mas, mesmo assim, Alejandro ainda lançava alguns olhares ameaçadores para ela. Terminada a festa, os dois subiram para os aposentos reais, onde, só quando viu a cama, Liz entendeu que a noite ainda não havia terminado. O terror tomou conta dela, e ela empacou no meio do quarto. Alejandro, percebendo, falou:
                — Não fique com medo, não vou lhe machucar. Agora tire a roupa.
                Liz permaneceu paralisada, olhando para a cama com uma palidez crescente, parecendo não ouvir o que ele falava.
                — Tire-a-roupa.
                Ela continuou parada.
                — Eu mandei tirar a roupa! — gritou ele, perdendo a paciência e jogando-a na cama.
                Quando ela acordou de seu transe e percebeu aqueles dois obscuros olhos fitando-a com fome e ferocidade, entrou em pânico e começou a gritar.
                — Me larga! ME LARGA!
                Era inútil. Alejandro já a dominava e rasgava seu vestido bordado de pedrarias. Ela continuava resistindo, mas o rei estava fora de si, e segurava-a com cada vez mais força.
                — CALA A BOCA! — gritou ele, dando um bofetão no rosto de Liz.
                Ela diminuiu a resistência, embora ainda lutasse com o homem que estava sobre seu corpo. Alejandro tirou a túnica e penetrou-a com força. Ela estava cada vez mais enojada enquanto ele aumentava a velocidade e força das estocadas. Pensava em José, nas noites que havia passado ao seu lado, e amaldiçoava aquele demônio que a havia seduzido com palavras doces. Lágrimas desciam de seus olhos enquanto ele urrava sobre ela, até que ela sentiu o corpo de Alejandro relaxar.
                “Graças a Deus”, ela pensou quando o rei largou-a. Alejandro fitou seu rosto pálido, e desceu os olhos por seu corpo suado e quente, até chegar ao seu ventre. Ele passou a mão entre suas pernas, e olhou para ela. Não achou o que queria. Passou novamente, dessa vez mais fundo e com mais força, e mais uma vez ficou decepcionado. Ele olhou fundo nos olhos de Liz, e com uma frieza calculada perguntou:
                — Onde está o sangue?
                Sangue? Que san... MERDA!
                — Minha ama disse que algumas moças não sangram na sua primeira vez — respondeu Liz, tentando esquivar-se da pergunta.
                — MENTIRA! — trovejou ele, dando uma tapa em seu rosto.
                — Não estou mentindo meu senhor. Minha ama...
                — Você não é mais virgem! — e deu mais uma tapa, com mais força que a anterior. — Eu queria uma noiva casta, e seu pai me entrega você: uma puta! — então ele agarrou seus cabelos e jogou-a ao chão. Liz chorava e gritava por socorro sem parar, com medo do que Alejandro poderia fazer com ela.
                — Com quantos homens você já transou? — perguntou ele, ajoelhando-se ao seu lado e apertando seu pescoço — Dois? Três? O castelo inteiro? Aposto que você deu até para os cavalos.
                — Eu não fiz isso... — respondeu ela, lutando para respirar.
                — Não-minta-para-mim! — disse Alejandro, apertando ainda mais forte. — Eu sabia que você estava escondendo alguma coisa desde o momento em que lhe vi pela primeira vez. Mas você se achava muita esperta com seu pai do lado para protegê-la, não é? Não temia que eu descobrisse, mas quem vai lhe proteger agora?
                Liz sentia sua alma sendo devorada por aqueles olhos demoníacos. Seu corpo estava começando a perder as forças, e tudo o que ela pensava era no sorriso de José. Seu sol. Ela parou de lutar, entregou-se.
                — Eu deveria lhe matar, mas não ficaria bem para um rei matar sua esposa na noite de núpcias — disse ele por fim, soltando seu pescoço. — Você vai dormir aí, no chão, com uma cadela, que é o que você é, e amanhã decido o que vou fazer — ele agarrou a cabeça dela e puxou-a para si, dando-lhe um beijo feroz. — Boa noite, vadia.
                Mas Liz não dormiu aquela noite. Ela permaneceu encolhida no chão em estado de choque; tremendo, chorando e com os olhos vidrados. Tudo o que ela enxergava era o rosto de José sorrindo para ela. Quando ela despertou de seu devaneio, a única coisa que se ouvia no castelo era o som do vento gelado do lado de fora. Ela ergueu-se lentamente por causa das dores que sentia no corpo, e caminhou pelo quarto, sem saber o que fazer. Andou até a cama e ficou olhando Alejandro dormir por um longo tempo. Ele dormia o sono dos justos, como o mais divino dos santos. Quando estava de olhos fechados era a encarnação da beleza, mas quando abria os olhos, aqueles olhos de demônio, era a maldade e perdição em pessoa. Liz caminhou até o baú onde estavam suas coisas, na esperança de encontrar uma saída para a desgraça que com certeza viria. Encontrou apenas roupas, sapatos, joias e mais roupas, até que espetou o dedo numa coisa afiada no fundo do baú. Precisou se conter para não gritar. Enfiou a mão novamente no baú, a procura do objeto pontiagudo, com cuidado. Seus dedos tocaram aquilo que parecia ser marfim, frio e liso. Ela puxou. O que veio em sua mão foi uma adaga de lâmina triangular, polida e afiada. “Quando eu coloquei isso aqui?”. Ela ficou admirando a adaga, que, provavelmente, havia sido presente de algum pretendente seu. Imagens do Salão Verde voltaram à sua cabeça. Todos os homens ali presentes lhe admirando, fazendo promessas. Seu pai dizendo que ela precisava se casar. Ela levantou-se e caminhou em direção à cama. Um rapaz bonito e misterioso vinha andando em sua direção. A adaga estava firme em sua mão direita. “Seus olhos não são como todos dizem” falou o rapaz. Ela parou ao pé da cama. O passeio no jardim. O pedido de casamento sob o olmo. Alejandro dormia placidamente, a encarnação da beleza. O casamento. A coroação. Os apertões. As ameaças. Ela ergueu lentamente a lâmina sobre a cabeça. O que ele fez com ela naquela cama. A surra que lhe deu. A humilhação.
                — Quem vai lhe proteger agora? — sussurrou ela no silêncio da noite, abaixando a adaga com rapidez e perícia contra o peito de Alejandro. Mas parou.
                “Por que você parou, sua idiota? Continue. Mate-o!” Liz tentou, mas não conseguia. “Pense no que ele fez com você. Ele lhe humilhou. Bateu em você. Ele estuprou você” Mas ela não conseguia, por mais que tentasse. “Amanhã ele vai lhe matar. Mate-o antes!”
                Não sou como ele.
                “Mate-o AGORA!”
                Não sou como ele!
                Liz correu com a adaga em direção a própria garganta, mas em vez de cortar seu pescoço, começou a cortar o cabelo aos tufos. “Amanhã ele vai me matar”. Correu até o baú. Foi só aí que ela percebeu que estava nua. Vestiu uma túnica simples. Pegou um manto grosso e uma saia velha. “Se ele não me encontrar, não vai poder me matar”. Foi até uma mesinha no canto do quarto e pegou todos os pães, queijos e frutas que estavam sobre ela e jogou-os dentro da saia que encontrou, fazendo uma trouxa. “Se eu conseguir chegar à Brumário, José irá me ajudar”. Foi até a lareira e pegou um pouco de cinzas e passou em seus braços, rosto e cabelo recém-cortado. Pegou a adaga e guardou na cintura. Saiu do quarto, deixando Alejandro dormindo, mas parou quando viu um archote aceso no corredor. Arrancou-o da parede e voltou ao quarto. Aproximou-se do rei e sussurrou:
                — Pensei melhor. Te vejo no inferno, vadia — e começou a tocar fogo nas cortinas, tapetes, armários, e antes que Alejandro acordasse e percebesse o que estava acontecendo, ela já descia os últimos lances de escada da torre onde ficava o quarto.
                Enquanto os moradores e empregados do castelo corriam apavorados para todos os lados, Liz roubava um cavalo da cocheira e corria em meio aos montes de neve de Alvo Campo, rindo sozinha de Alejandro trancado em seu próprio quarto em chamas.
                — Eu estou sorrindo agora! Está vendo, meu senhor? — gritava ela para o vento, enquanto o castelo ardia em altas labaredas as suas costas.

●●●

                Depois de algumas semanas, Liz chegou à Brumário. Foi um trajeto difícil, onde ela precisou enfrentar a neve, a escuridão, e, quando a comida acabou e não se achava fruta em lugar algum, roubar de algumas casas e plantações que se encontravam pela estrada. Ela esperou anoitecer para poder passar escondida pelos muros do castelo, deixando o cavalo do lado de fora. Já era tarde e tudo estava em total silêncio. Passou em frente às forjas e depósitos, chegando finalmente à cavalariça, onde os cavalos dormiam sem se preocupar com a garota encapuzada que passava entre eles. Ela chegou à porta dos fundos e bateu-a o mais sutil e silenciosamente que conseguiu.
— José, abra. Sou eu. Voltei. — sussurrou Liz na esperança de que ele pudesse escutar.
Mas quem abriu a porta não foi José, e sim um rapaz moreno, alto e musculoso de cabeça raspada. Liz assustou-se.
— Onde está o... o... José?
— Ele não trabalha mais aqui.
O pânico tomou conta de dela.
— O que fizeram com ele? — falou ela, mais alto do que gostaria, mas o rapaz não pareceu perceber o seu temor.
— Ele casou-se e foi plantar roça lá para as bandas de Naugrúvia. Se a senhora não se importa, eu preciso...
— Casou-se? Quando? — perguntou Liz, desnorteada.
— Não faz muitos dias. Assim que a princesa foi embora do castelo (que Deus a tenha) ele arranjou uma noiva não se sabe onde, não se sabe como, e casou-se, saindo quase fugido daqui. Na verdade, era uma mulherzinha estranha; baixinha, tinha os dentes tortos, mas fazer o quê? Nessas coisas de amor não se pode fazer nada.
Esta última parte sobre o amor Liz não escutou, pois já havia dado as costas e caminhava apressada para fora da cavalariça, deixando o cocheiro falando sozinho. Ela saiu dos muros do castelo e subiu no cavalo, que cochilava, e começou a cavalgar como se um exército a perseguisse, sem rumo. O homem que havia jurado nunca esquecê-la, sempre estar ao seu lado, ama-la para sempre, havia casado com outra. O homem que havia sido o responsável pelos melhores momentos da sua vida não a amava mais. Nunca mais iriam se ver. Ela não o culpava, afinal de contas, ela também havia casado, tinha construído uma nova vida — ou quase. Mas eu não tive escolha. Ele não poderia espera-la para sempre, ele precisava viver. Neste momento ela chegou à conclusão de que o destino não tem o menor senso de humor. Liz sabia que nenhum dos dois tinha culpa do que aconteceu, e se algum dia houve amor entre eles, ele ainda devia abitar em algum lugar, mesmo que no quarto frio e úmido da cocheira. Neste momento Liz parou o cavalo no alto de um monte, para contemplar o nascer do sol, que derramava seus raios de luz sobre uma torre em ruínas no fundo de um vale verdejante, rodeada por árvores e lírios. Ao longe se podia ouvir o canto dos pássaros e o som de água corrente.
Quão bela pode ser a tristeza?”


Para Lilian;
minha  princesa, minha flor'

7 comentários:

Claudio Chamun disse...

Muito bom! Fim inesperado. Acredito que todos achavam que ela iria se encontrar com José. Quem sabe em uma quarta parte?

Visite o meu e diga o que acha.
www.cchamun.blogspot.com.br
Podemos ser seguidor um do outro, o que achas?
Abraço.

Pedro Lourenço disse...

Claudio, adorei seu blog. Suas crônicas são ótimas, e aquela da motosserra é hilária.

*Já estou seguindo'

Anderson Brito disse...


Simplesmente "PERFEITO", sempre que li seus poemas, seus contos, eu sempre dizia que você era louco e que eu não entendia nada, mas pela primeira vez tenho que me ajoelhar aos seus pés e lhe reverenciar por esta obra que pela primeira vez me envolveu completamente. A cada palavra que eu lia a emoção e a curiosidade tomava conta de mim... Parabéns e obrigado, de certo modo, pela homenagem "José". Parabéns.

Claudio Chamun disse...

Pedro:
To te seguindo também. Confere ai.

Não deixe de pensar na parte 4, acho que rola hein?

No meu blog. Navegue pelas outras crônicas, vais gostar de "Bater ou não bater eis a questão", Mas não deixe de ler as outras. O Blog é novo, tem apenas 3 meses e 14 crônicas.
Abraço.

Jefferson Reis disse...

Ual! Parabéns. Apenas achei estranho o fato de um castelo de pedra pegar fogo tão rápido, mas não entendo mesmo disso, rsrsrsr. O Rei era muito violento e a princesa muito fácil, convenhamos. Deixou-se encantar muito fácil com palavras bonitas. E o José, coitado, terminou com uma baranga, rsrsr

Pedro Lourenço disse...

Os castelos antigos são cheios de tapeçarias, cortinas, e móveis de madeiras raras por todos os lados; provavelmente, por isso, ele pegou fogo tão rápido (eu acho). Também não entendo nada de castelos. Acho que a princesa não era tão fácil assim; talvez ela estivesse apenas querendo ver seu pai feliz, realizando o desejo dele. Muitas vezes abrimos mão do que sonhamos para agradar a quem amamos. Temos a impressão de que a princesa é muito fácil por causa da cena do jardim, no entanto, ela nos é apresentada através da visão de José, e não temos a oportunidade de acompanhar aos pensamentos de Liz, e, convenhamos, ela é bastante hostil (no seu mundinho particular), e não queria nem um pouco esse casamento. Alejandro era uma mistura de garoto mimado com lobo mau; esperando desde sempre uma vítima indefesa para "abocanhar", mas, assim como o lobo dos três porquinhos, acabou queimado. E o José (pobre José) é a representação de muitos garotos que existem por aí: é o homem certo, mas que, por falta de oportunidades/posses/poder, acaba com a garota errada.

Vanessa Santos disse...

E quem disse que nãoe existe vida inteligente na internet? parabens!
Me faz uma visita?http://mardeletras2010.blogspot.com.br/2012/09/cidade-bipolar.html