Abrem-se
as cortinas. O cenário se resume a uma árvore seca e sem vida banhada por uma
sutil luz dourada, que tenta imitar o sol, sua beleza e ferocidade. Entra Maria
aos prantos e correndo, trajada e maquiada ao estilo armorial. Ela joga-se de
joelhos diante da árvore, levando as mãos fechadas em concha ao coração. A
atriz olha para cima, para os ramos da árvore, depois desce a vista até seu tronco
e precipita-se sobre ele, abraçando-o. Abre a boca e diz em altos brados:
— Árvore,
tu que é minha amiga, acuda-me! Ajude-me Dona Árvore.
— Por que
choras menina? Respira e diz o que te aconteceu — responde uma voz sem dono.
— É meu pai,
Dona Árvore. Ele quer vender-me a um homem velho e feio, a que todos chamam
“Coronel Midasino”. Dizem que rios de dinheiro correm em suas fazendas, e que
os dentes já lhe nasceram de ouro, e até que tem casa lá para as bandas do mar.
— Mas por
que este coronel quer lhe comprar? Para fazer companhia a suas cabras não há de
ser.
— Antes
fosse. Ele quer casar comigo. Quer me fazer sua esposa de papel passado —
responde, com voz branda e suave.
— E por que
você não casa?
— OXE! Quero
não, Dona Árvore! — rebate Maria irritada, levantando-se de um pulo e saltando
para longe da árvore — Nasci pra casar com homem velho e feio não. Dona
Genoveva disse que o tal do coronel já tem mais de 200 anos, e que chegou aqui
antes mesmo de tudo virar sertão, quando "inda" era mar.
— Não
acredite em tudo que o povo diz, menina. Essa gente daqui gosta de inventar
história. Por que você não diz a seu pai que não quer casar com o coronel?
Talvez ele...
— Já disse,
Dona Árvore! Já disse! — esbraveja a atriz, voltando a chorar — Mas ele diz que
criança não tem querer! Diz que me casa com o Coronel Midasino nem que seja
amarrada! Ajude-me Dona Árvore! Eu imploro.
— Pobre
menina, como poderei eu te ajudar se não passo de uma árvore velha e torta? —
responde a voz, em tom doce e melodioso.
— Me leve
embora daqui Dona Árvore, para um lugar onde meu pai não me encontre — suplica
Maria, indo para frente do palco e dando as costas à árvore.
— Como
poderia eu te levar, se minhas raízes me prendem a este chão seco e duro?
— Então me
esconda embaixo das tuas raízes, dentro da terra.
— Bicho homem
não vive dentro da terra, tire essa ideia da cabeça. Quando tua gente desce ao
chão é pra não mais voltar.
— Então me
leve para baixo do chão, Dona Árvore! Acho esse melhor fim do que casar com o
coronel.
— Deixe de
asneiras! — o silêncio prolonga-se, sendo quebrado apenas pelos suspiros da
atriz — Menina Maria, tenho um segredo a lhe contar. Não lhe contei antes
porque... bem, não sei porque não contei antes, mas agora vou contar.
— Conte logo,
Dona Árvore, que sua demora tá me deixando avexada.
— Não sou
árvore.
— Não é
árvore? — Maria vira-se — Como não, se tem cara de árvore.
— Não sou
árvore.
— Como não,
se tem cheiro de árvore — afirma a menina, cheirando o tronco.
— Não sou
árvore.
— Como não,
se até o gosto é de árvore — questiona Maria, lambendo a casca da árvore.
— O que tu
vê, sente, cheira e... e prova, é árvore, mas eu não sou árvore.
— Agora entendo ainda menos do que
antes.
— Não sou árvore, menina Maria, sou
pássaro, desses que voam e fazem ninho — esclarece um passarinho de madeira,
que sai de um buraco no tronco. — Quando tu vieste da primeira vez, assustada e
cheia de verbos, eu dormia aqui neste buraco. Eu te escutei e te aconselhei,
mas tu pensaste que era a árvore que te falava, e não “eu”. Voltaste, e
passas-te a me chamar de “Dona Árvore”, então te deixei pensar que era a árvore
que te respondia. Mas sempre fui pássaro, e sempre hei de ser.
— Que susto Dona... Seu Pássaro, até
pensei que fosse coisa mais séria.
— Tu não ficaste arretada comigo?
— Oxe! Por que haveria de ficar se você
não fez nada de mal pra mim? Não importa se é planta ou bicho, eu não confio é
em gente. Mas, Seu Pássaro, por que inventou de contar isso pra mim agora?
— Por que, talvez, assim eu
conseguiria resolver o seu problema.
— Como, Seu Pássaro? Como?! — pergunta
Maria, eufórica.
— Te levando pelo céu comigo, pois, lá
no alto, teu pai não há de nos encontrar.
A menina fica subitamente abatida, de
ombros caídos, e fala, com voz triste e apática:
— Como poderei ir contigo, Senhor
Pássaro, se não posso voar?
— Isso não é problema.
— Como não, se sou gente, e gente não
tem asa, e quem não tem asas não voa.
— Isso não é problema, menina Maria,
pois sou um pássaro mágico, e tenho o poder de transformar quem quiser em ave,
como eu.
Neste momento um grande sorriso
estampa-se no rosto da atriz e de todo o público.
— Então me transforme, Senhor Pássaro!
Me transforme em passarinho, como o senhor.
— Tem certeza disso, menina Maria?
Depois de virar pássaro, nunca mais voltarás a ser gente.
— Tenho certeza sim! Pode me
transformar! É melhor ser pássaro do que ser gente, pois bicho pior não há.
Dai-me asas, Senhor Pássaro, que assim chegarei mais perto do sol, e o que me
prende aqui na terra lá no alto não há de me alcançar.
— Se é verdadeiro teu desejo, então te
darei asas, penas e um bico, e assim serás pássaro, como eu.
E depois disso a atriz some num
turbilhão de fumaça, ao som de um maracatu qualquer, dando lugar a um
passarinho de madeira alva, menor do que o outro. Os dois então abrem suas asas
mecânicas e voam sobre o público. Todos aplaudem extasiados. Os atores voltam
ao palco e fazem suas mesuras. As luzes se apagam e as cortinas se fecham. Fim
do espetáculo.
●●●
A atriz deixa de ser Maria e volta a
ser Verônica. Tira o vestido de retalhos coloridos e veste sua calça jeans.
Lava o rosto rapidamente para retirar a maquiagem pesada, pega o ordenado do
dia com o produtor, se despede de todos e caminha para a saída do teatro.
Acende um cigarro no caminho, e sai para a noite fria e escura, sem as luzes
douradas. Corre para pegar o ônibus que já chegava ao ponto. Paga a passagem e
senta-se no fundo. Reclina a cabeça e cochila enquanto uma das falas da peça
volta a sua cabeça. “Quem não tem asas não
voa”. Fim do espetáculo.
2 comentários:
Só não gostei a parte do cigarro - rss. Sou anti-tabagista.
Esta estória dá uma peça de teatro.
É uma das minha metas se eu ganhar na mega sena - kkkk - produzir peças e filmes de novos talentos.
www.cchamun.blogspot.com.br
Histórias, estórias e outras polêmicas.
Também não gosto de cigarro, mas parece que todos os artistas fumam e/ou tomam café em demasia.
E se quiser me patrocinar eu deixo' ;D
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