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sexta-feira, 14 de setembro de 2012

OS OLHOS DA FLOR - parte 2



               Liz acordou com batidas fortes na porta. Olhou em volta. O quarto suntuosamente decorado estava iluminado pelas pela luz do sol, que era filtrada pelas finas cortinas azuis. Pássaros cantavam em algum lugar distante.  As batidas continuavam.
                — Acorde senhorita. O sol já vai alto e o senhor Rei, seu pai, lhe espera no Salão Verde. Acorde.
                — Já acordei! Vá a meu pai e diga que já desço.
                — A senhorita não deseja que eu lhe ajude a vestir-se?
                — Hoje não ama, obrigada. Desejo ficar sozinha. Pode ir.
— Como desejar, senhorita.
Os ecos da noite anterior ainda ressoavam nos pensamentos de Liz. Ela, que por tanto tempo havia vivido triste e solitária, havia encontrado o amor nos braços de José, e agora tinha que abrir mão de tudo o que havia sentido e vivido. Os dias de sol nos verdejantes campos próximos ao castelo, as aventuras no bosque, as noites de prazer na cabana da cocheira. Os rios, as flores, os beijos, os pássaros, os suspiros, as verdades, a chuva e tantas outras maravilhas haviam permeado a vida e os sonhos de Liz, e agora tudo sumia por causa do reino e da maldita coroa. E se ela não fosse uma princesa, se fosse uma camponesa como José, será que tudo seria diferente? Claro que seria. Eles poderiam viver seu amor sem ninguém para interpor-se a ele. Poderiam ter uma casinha no campo, com flores em volta, e, quem sabe, até um riacho ao fundo. Seus filhos correriam pela casa, brincariam na grama, seriam felizes. Todos seriam. Mas quis o destino o contrário: quis dar a Liz o fardo de carregar uma coroa que ela nunca desejou. Quis encarcera-la num castelo de pedras frias e cinzas, longe dos amores, dos sonhos, da felicidade. Agora ela teria que ir encontrar-se com uma legião de homens estranhos. Teria de ser medida e analisada por eles, como um objeto. Distribuiria mil belos sorrisos, mil tristes mentiras. Escolheria um deles. Um dos homens do salão. Mas o homem que ela amava não estaria no salão; estaria da cavalariça, e dali não sairia jamais.

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Quão bela pode ser a tristeza?” Era o que Liz pensava, parada em frente às portas do Salão Verde. Elas eram enormes e pesadas, forjadas em um metal azulado. Traziam o alto-relevo de uma torre em ruínas, rodeada por flores e árvores. O sol surgia detrás de uma nuvem, derramando seus raios de luz sobre o cenário. Todas as vezes em que a princesa dirigia-se ao salão parava para contemplar suas portas. Ela ficava encantada com a beleza daquela ruína, com aquela torre, que mesmo destruída, podia ser tão maravilhosa. Ela se lembrava de haver perguntado um dia para sua ama onde ficava aquela ruína, mas ela não soube responder. Perguntou ao seu pai, a José, até ao sábio Aliano, mas nenhum soube. Tudo o que se sabia é que aquela torre foi a única coisa que sobrou do primeiro castelo construído em Brumário pelos ancestrais de Liz. Ela acordou de seu devaneio com o barulho das pesadas portas se abrindo, revelando o salão repleto de homens do outro lado. Ela respirou fundo e começou a andar, com os olhos fixos em seu pai, que estava sentado no trono com um sorriso nos lábios e os olhos úmidos. Liz podia sentir os olhares das dezenas de homens sobre ela, como feras famintas prontas para atacar. Seus cheiros, seus cochichos, seus sorrisos maliciosos, tudo a amedrontava, tudo perturbava seus sentidos. Ela chegou ao trono. Ajoelhou-se. Beijou a mão de seu pai. Olhou em seus olhos. Aqueles olhos tristes deviam ser coisa de família. Levantou-se. Sentou em sua cadeira de espaldar alto. Estava servido o banquete.
Cada um dos homens foi até ela, confessando amores e paixões em diferentes línguas e sotaques. Prometeram terras em todos os quatro cantos do mundo. Compararam sua beleza com todas as flores e estrelas conhecidas. Os presentes amontoavam-se em uma pilha ao seu lado, sempre acompanhados de ofertas e desejos. Nada encantava a Liz, que tratava seus pretendentes com uma apatia fora do normal. Os homens, depois de conversar com ela, amontoavam-se nos cantos do salão aos berros e cochichos, alguns engrandecendo ainda mais suas virtudes, outros amaldiçoando sua frieza. E assim permaneceu o ciclo —galanteios, presentes, promessas, decepções, maldições — até que quase todos os cavalheiros já haviam conversado com a princesa. A aflição de Liz crescia a cada homem que passava por ela, a cada passo do destino em direção ao casamento. O tempo para escolher um marido estava acabando. Ela sentia nuvens negras aproximando-se, encobrindo seu sol, escondendo José de seus olhos, mas não de seu coração. Liz abaixou a cabeça e ficou olhando para o chão de pedras esverdeadas, com os olhos queimando, até que o rei, seu pai, sussurrou no seu ouvido:
— Repara filha minha, que quem vem ali é o príncipe Alejandro de Alvo Campo, do qual falei, lembra-te?
A princesa não respondeu, apenas ergueu a cabeça já imaginando que tipo de aberração seu pai lhe havia reservado; talvez ele tivesse as pernas tortas, ou fosse um covarde, ou um total e completo idiota, como todos ali eram. Mas não foi isso que os afamados olhos da flor viram, para alívio — ou decepção — de Liz. O rapaz que vinha na sua direção não era como os outros homens do Salão Verde. Ele caminhava elegante e lentamente, como um príncipe deve andar. Trajava uma túnica negra, com um manto azul-marinho. Era sem dúvida o mais alto que ali estava, e de longe se podia ver sua cabeleira negra e sedosa. Seu rosto, apesar de claro, tinha um brilho de um dourado intenso, e contrastava com seus olhos escuros e sem vida. Ele aproximou-se de uma Liz deslumbrada, ajoelhou-se, tomou a mão dela entre as suas e beijou-a.
— É uma grande honra conhece-la, princesa — falou o rapaz. — Sou o príncipe Alejandro de...
— Já sei quem és.
— Claro. O rei já deve ter falado de mim, espero que bem.
— Muito bem, não se preocupe. É uma grande honra recebê-lo no nosso castelo — respondeu o rei. ­­— Como vai o seu pai?
— Receio que não muito bem, meu senhor. Ele está acamado já faz alguns dias, por isso não poderei ficar tanto quanto eu gostaria, mas ele mandou saudações, e espera que o senhor vá visita-lo qualquer dia desses.
— Diga a ele que não se preocupe, que assim que possível irei a Alvo Campo para saber o que aquele velho anda fazendo naquelas terras geladas — disse o rei por fim, voltando sua atenção para um criado que havia chegado com um rolo de pergaminho.
Alejandro voltou-se para a princesa, cravando seu olhar nela. Alguma coisa naqueles olhos causava um calafrio em Liz. Eles eram como dois abismos profundos, sem fim, e ela tinha medo de cair dentro deles. Tinha medo dos demônios que ali habitavam, e receava pelas suas lembranças e sentimentos, que uma vez deitadas às profundezas, definhariam sem a luz do sol.
— Seus olhos não são como todos dizem — disse o príncipe depois de um longo tempo em silêncio.
— O que o senhor quer dizer?
— Eles não são plácidos e... frios, como me contaram. Eu vejo calor neles. Inquietação, mistério, e até... seria medo?
— Medo de quê? — perguntou Liz, assustada. Como ele pode ver tudo isso? Ela imediatamente pensou em José, e no que poderia acontecer se alguém descobrisse o romance deles.
— Não sei. Foi bobagem minha. Gostaria de conversar com a senhorita em algum lugar mais reservado, longe dos olhares curiosos de todos esses cavalheiros. Talvez nos jardins, concordas?
Liz ficou surpresa, e iria recusar, mas seu pai disse que fosse. Alejandro tomou-a pelo braço e os dois caminharam em direção aos jardins. Lá o príncipe falou de como estava curioso em conhecê-la, e de como ficou feliz em descobrir que ela não era menos do que falavam, com exceção dos olhos, que eram muito mais lindos do que lhe haviam contado. Próximo às rosas ele elogiou sua beleza, e próximo às tulipas, sua discrição. Quando passavam pelos cravos, ele enalteceu sua inteligência, e no meio dos narcisos ele falou de si mesmo. À sombra de um gigantesco olmo ele contou do seu desejo de casar-se com ela, e próximo à fonte ela aceitou. Nenhum dos dois reparou em José, que assistia a tudo do meio dos lírios. Ele escutou pouco, mas foi o suficiente para entender que havia perdido Liz para sempre. Saiu do meio das flores, e foi entre os cavalos que ele chorou.

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(continua)

Um comentário:

Jefferson Reis disse...

Pobre José. Lugar errado, hora errada. Ou talvez, lugar certo e hora certa. Gostei muito desse trecho: "Próximo às rosas ele elogiou sua beleza, e próximo às tulipas, sua discrição. Quando passavam pelos cravos, ele enalteceu sua inteligência, e no meio dos narcisos ele falou de si mesmo. À sombra de um gigantesco olmo ele contou do seu desejo de casar-se com ela, e próximo à fonte ela aceitou."