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quinta-feira, 2 de maio de 2013

DIÁLOGO SOBRE O DEFUNTO



O padre suava aos borbotões dentro de sua batina negra, e, a cada frase de sua prece que terminava, erguia um lenço para enxugar a testa, lenço este que já estava ensopado com o suor do homem de Deus. O sol havia sido ocultado por mal-humoradas nuvens cinza, mas ele, orgulhoso como é, fazia questão de transformar a terra num inferno, mesmo sem poder ser visto. O astro rei derramava impiedosamente seu calor diabólico sobre grama mal aparada, lápides em ruínas e roupas pretas, e uma roupa azul, no caso da Dona Bela.
            As poucas pessoas presentes no enterro se agrupavam em torno da cova aberta, trazendo expressões que iam da tristeza saudosista à impaciência escancarada, salpicadas aqui e ali por grupos de senhoras ― e alguns senhores ― que cochichavam desconfiadas sobre o defunto, a mãe do defunto e a causa da morte do defunto. Margarida falava à Dona Fátima sobre a má educação que Maria José ― a mãe do defunto ― havia dado ao filho, em um tom um tanto altivo para alguém que tem o filho que tem, na minha singela opinião, mas isto não vem ao caso. Zefinha falava com o marido e a filha algo sobre um terreno em Roda de Fogo, e, não muito longe dali, Dona Terezinha e Dona Emília abanavam-se com as mãos enquanto fuxicavam descontroladamente. Impressionante como elas não perdiam o fôlego.
            ― Então, foi gaia mesmo?
            ― A família não falou nada sobre isso, mas a vizinha de Maria José, aquela Ana, que faz salgados, disse que foi gaia. A mãe não quer falar pra não passar vergonha. Até entendo.
            ― Mulher, eu num esperava isso de Cecília não. Logo ela, que tinha aquela cara de santa. O corno pegou os dois na cama, foi?
            ― Nada, mulher. O pobre do Davi tava trocando o botijão de gás quando Ramiro chegou. Teve nem como se defender. Os tiro foi tudo na cabeça.
            ― Coitado. Tão novo e teve um fim desse. Merecia não. Mas é isso que dá comer a mulher dos outros.
            ― E o pior é que nem comeu.
            ― Como assim, mulher? ― falou Dona Emília, alto demais, chamando a atenção de quem estava por perto.
            ― O corno matou o homem errado.
            ― Mas num era esse aí que tava na casa dele quando ele entrou?
            ― Era, mas ele num tinha nada a ver com a história; tava lá porque Cecília chamou ele pra trocar o gás que tinha acabado. Quem comia a mulher de Ramiro era o tal do Eduardo, sobrinho de Seu Bio. Tu sabe quem é?
            ― Num é aquele da moto laranja?
            ― Pronto, é esse mesmo. Pois a história da guaia chegou no ouvido de Ramiro, e ele voltou arretado pra casa, pronto pra matar o cabra que dormia com a mulher dele, mas quando chegou lá viu Davi, e pensou que fosse ele. Deu três tiros na cabeça e fugiu. Parece que Cecília se escondeu, e por isso se salvou.
            ― Sangue de Cristo tem poder. Quer dizer que o menino morreu por nada? Acredito nisso não.
            ― Isso que dá se enfiar em casa de puta. Leva fama de urso sem nem ter tocado na quenga.
            ― E que fim levou Cecília?
            ― Hum! A rapariga não perdeu tempo. Assim que o corno fugiu, ela correu pra casa do urso. Os dois treparam naquela moto e meteram o pé. Tão dizendo que foram pra Alagoas, mas eu acho que eles tão é escondidos por aqui por perto mesmo.
            ― Quer dizer que Davi morreu de graça, a rapariga fugiu com o urso e o corno continua sendo corno?
            ― Então. Parece até novela.
            ― Esse mundo tá perdido mesmo. ― Dona Emília calou-se por quatro segundos, e, acredite, esse foi o silêncio mais longo da conversa. ― Vixe Maria, esse padre não para de falar hoje não? Ele tá achando que a gente não tem mais o que fazer em casa não, é?
            ― Mulher, fala assim do padre não que é pecado. Controla essa língua.
            As duas senhoras calaram-se a tempo de dizer “Amém”, mais um de tantos que ainda seriam proferidos naquele enterro. Dos ali presentes, só o defunto não se uniu ao coro.

8 comentários:

Anônimo disse...

Hahaha Ri muito!
Muito bom. :D

Unknown disse...

Lembrei das vizinhas daqui do meu bairro. HAUHUAUAHAHUA excelente texto cara!

http://utopianongrata.wordpress.com/

Claudio Chamun disse...

Trágico e engraçado.
Muito bom Pedro.
Grande estilo.

Mari Mari disse...

Muito bom! Preciso te dizer que achei extremamente bem escrito, e com pitadas de humor e ironia na medida certa. Olhe que não costumo gostar de crônicas cotidiana, mas tiro meu chapéu pra esse diálogo sobre o defunto!

Claudio Chamun disse...

Cadê você Pedrão? O H. E. e O. P. está sentindo tua falta.

Pedro Lourenço disse...

Daqui a pouco eu apareço lá, Chamun ;D

@qFernando disse...

GENTE!!!! SENSACIONAL o conto, adorei, quem não se identifica né, vizinha fuxiqueira é o que mais existe no mundo, e aglomeração de pessoas, mesmo que seja em um enterro, é pedir pra que elas apareçam se unam e comecem a descer a lingua em todo mundo, o melhor é quando de separam e daí uma começa a falar mal da outra ... rsrsr realmente ótimo o texto, minha primeira vez aqui e adorei o layout do blog tmb, parabéns...

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http://anteontemmusical.blogspot.com.br/

Claudio Chamun disse...

Obrigado por ter participado da festa de Aniver do H. E. e O. P. meu amigo.
És muito bem vindo por lá e em qualquer lugar.

Estou com saudade dos teus textos.

Abraço.