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terça-feira, 20 de novembro de 2012

DOCE ESCURIDÃO - parte 4

Atendendo a pedidos, aqui está a continuação de Doce escuridão.
                Peço desculpas por demorar tanto para postá-la, mas uma mistura de garganta inflamada e bloqueio criativo me impossibilitaram de escrever. Mas o que importa é que acabei, e aqui está o fim... na verdade não é exatamente o fim, pois terei que dividir a continuação em duas partes.                Sem mais rodeios, aqui prossegue a história de Kevin e Sophie, mas serão eles os mesmos que conhecemos?                
Boa leitura.


 LONGE, MUITO LONGE

Era uma vez, numa aldeia esquecida pelo resto do mundo, um casal de irmãos. Seus nomes eram Kevin e Sophie. Eles viviam felizes com seus pais e com toda a gente daquele lugar, até que, certo dia, uma desgraça se abateu sabre eles.
Uma horda de bárbaros invadiu o povoado na calada da noite. Saquearam e queimaram as casas, estupraram as mulheres e mataram todos aqueles que se atreveram a lutar, inclusive o pai de Kevin e Sophie. Da mãe deles não se sabia o paradeiro. Ela havia sido arrastada pelos invasores para fora de casa, aos gritos. Os irmãos conseguiram fugir esgueirando-se pelos fundos da casa e correndo pela estrada, encobertos pelo manto de escuridão de uma noite sem luar. Caminharam durante dias e mais dias, e, numa noite, quando haviam se convencido que já estevam relativamente seguros, depararam-se com o acampamento dos saqueadores montado na floresta. Eles fugiram desembestados, como se a própria morte estivesse caçando-os, esticando suas frias mãos para arrasta-los para o vazio. Nesta desesperada fuga, foram parar numa floresta assombrada, onde as árvores tinham vida e fome. Mesmo lutando com todas as suas forças contra os galhos e raízes, eles acabaram sendo subjugados. Quando tudo parecia estar perdido, uma mulher misteriosa apareceu e livrou-os do abraço da morte, mas não por muito tempo. A estranha que os salvou na verdade era uma bruxa com sede de sangue. Ela sequestrou Sophie e tentou sugar a vida da pobre garota, mas Kevin chegou a tempo de impedir os planos da bruxa de se concretizarem. Ele arrancou a cabeça dela com um machado, e conseguiu salvar a irmã, mas a jornada deles não acabava aí... Eles deviam encontrar sua mãe, e, caso ela ainda estivesse viva, libertá-la de seu cativeiro, não importa o quão difícil isso fosse.
A estrada era sombria, e por mais terríveis que fossem os demônios que eles encontrariam no caminho, o pior ainda estava por vir.

●●●

— Chegou a hora — disse Kevin, deitado de bruços na terra e olhando para o horizonte.
Sophie levantou-se e foi para junto do irmão, acompanhando-o em sua vigia. O dia estava nublado, e tudo parecia estar coberto por uma fina película de cinzas. Kevin não deu atenção para a irmã quando ela sentou-se do seu lado. Seus olhos continuaram voltados para longe, muito longe...
— Você tem certeza? Não podemos esperar mais um pouco? Quem sabe...
— Não, não podemos mais esperar — cortou o irmão. — Há cinco anos nós procuramos por ela, e agora que finalmente temos alguma chance de encontra-la, você quer “esperar mais um pouco”?
— Eu não... não foi isso... Me desculpe. Você está certo. Quando iremos então? Vamos esperar anoitecer, ou...
— Agora.
Sophie não falou mais nada, apenas lançou um último olhar para o castelo que estavam espionando. Uma ilha negra num mar sem vida. Aquelas altas torres pareciam mãos com garras afiadas, tentando arrancar os próprios deuses do céu e joga-los na terra. Há cinco anos eles procuravam a mãe. Andaram por terras estranhas e sombrias; depararam-se mais de uma vez com a crueldade dos bárbaros, e seguiram seu rastro de destruição, mas nunca haviam conseguido nenhuma pista do paradeiro da mãe... até agora.  Ao que parecia, todos os prisioneiros eram levados para aquele castelo, depois se decidia o que seria feito deles. Com certeza haveria alguma pista, alguma resposta, entre aquelas paredes, e eles precisavam entrar lá. Era muito arriscado, eles sabiam; mas agora que haviam chegado tão longe, não podiam desistir.
O tempo transformou-os. Os desafios e perigos que encontraram no caminho os obrigaram a crescer mais rápido que os demais, e a trilharem sozinhos seus próprios caminhos. As mãos de ambos já estavam sujas de sangue. Não havia mais inocência neles, apenas uma alma cavernosa e cheia de ecos.
Desceram juntos do morro de onde estavam espionando, e caminharam em direção aos portões da muralha. No meio do caminho Sophie pegou um pouco de lama e espalhou pelo corpo, e Kevin amarrou as mãos dela e arrastou-a assim pelo resto do trajeto. Chegando perto do castelo, ele levantou o capuz e baixou a cabeça, mascarando-se com sombras. Dois vigias guardavam um portão secundário, para o qual eles se dirigiram. Quando Kevin se aproximou, os guardas cruzaram suas lanças, impedindo que os irmãos passassem. O da direita perguntou:
— O que vocês querem aqui?
— Encontrei essa vadia escondendo-se na floresta perto de Caimar, e vou vendê-la como escrava — respondeu Kevin, sem levantar o rosto. Ele e a irmã já haviam causado problemas suficientes para os bárbaros, e se fossem reconhecidos, tudo estaria perdido.
O guarda da esquerda aproximou-se de Sophie. Ele era mais alto que seu companheiro, e seus braços eram tão grossos quanto troncos. Sua espada balançando pesadamente, presa em seu cinto. Ele parou na frente de Sophie, agarrou a bunda dela com sua grande mão e puxou-a para si. Ela não tentou resistir.
— Há muito tempo não como uma boa puta. O que você acha se ficarmos com ela, Isy? — gritou ele para o outro guarda.
— Ela é minha prisioneira — disse Kevin, calmamente.
O vigia que estava junto dele ficou encarando-o, ou encarando o capuz, pelo menos. A cada segundo que passava, Kevin ficava mais apreensivo, mas procurou esconder isso. Por fim, o guarda falou:
— Podem passar.
Sophie e o irmão relaxaram neste momento, e passaram pela muralha, mas, depois de terem dado alguns poucos passos, uma voz chegou até seus ouvidos:
— Esperem.
Os dois pararam no mesmo momento. Ouviram passos aproximando-se deles.
— Abaixe o capuz — disse um dos guardas para Kevin.
Ele virou-se para o homem, mas não o obedeceu.
— Abaixe o capuz agora.
A esta altura o segundo guarda já se juntava ao seu colega, mas Kevin não obedeceu. Foi só quando os dois guardas já estavam próximos dele, e pareciam estar a ponto de arrancar-lhe o capuz a força, que ele o abaixou, e encarou-os. Os vigias olharam-no sem grande interesse, até que aquele chamado Isy franziu o cenho, apertou os olhos, e disse:
— Eu conheço você.
— Não, não conhece — disse Kevin com toda a calma do mundo. Antes que o homem pudesse dar mais uma palavra, Kevin puxou o punhal da cintura e cortou a garganta dele, fazendo jorrar uma cascata de sangue pelo pescoço e peito do vigia. O segundo guarda nem teve tempo de reagir, pois Sophie já havia se soltado das cordas e caído sobre ele. Agora ambos estavam jogados, com as gargantas cortadas, numa poça de sangue que crescia cada vez mais. Suas espadas permaneciam nas bainhas.
— Vamos nos livrar dos corpos e sair daqui antes que alguém dê o alarme de invasores — disse Kevin à irmã, limpando o punhal no manto do guarda mais alto. Eles esconderam os cadáveres dentro de uma carroça que estava próxima ao portão, e foram em direção ao castelo.
As ruas estavam desertas, pois ainda era muito cedo e o sol mal havia acabado de nascer. As janelas das casas ainda estavam fechadas, mas já era possível ouvirem-se sons dentro delas. Esgueiraram-se por becos e vielas, procurando fugir dos guardas que rondavam a cidade. Quando passaram por uma fonte, Sophie limpou a lama seca que cobria seu rosto, e continuaram a andar. Encontraram algumas caixas cheias de garrafas vazias jogadas numa esquina. Cada um pegou uma. Quando eles chegaram às ruas mais amplas que rodeavam o castelo, uma corneta tocou em algum lugar distante, provavelmente nas muralhas. Não muito depois, três guardas passaram correndo por eles. Um deles parou e perguntou-os:
— Para onde estão indo?
— Estamos levando estas garrafas para a cozinha do castelo — mentiu Sophie.
O homem não se deteve mais, apenas bufou aborrecido e seguiu correndo atrás de seus companheiros. Kevin e a irmã por fim chegaram ao castelo. Entraram numa rua estreita e suja, cercada de altos muros de ambos os lados. Uma grossa porta de madeira destacava-se na parede de pedras ásperas. Não havia guardas vigiando-a. Bom. Abriram-na e entraram no que parecia ser um depósito. Linguiças e grandes pedaços de carne salgada pendiam do teto. As prateleiras estavam cheias de queijos, especiarias e potes de barro. Sacos de trigo e cevada amontoavam-se pelo chão, juntos com caixas e mais caixas de legumes. Eles não largaram as caixas com garrafas. Passaram por uma portinha e saíram numa ampla cozinha. Algumas poucas pessoas trabalhavam amassando e assando pães, ou cortando legumes. Nenhuma delas deu atenção aos intrusos. Largaram as caixas sobre uma mesa e continuaram. Da cozinha foram para um refeitório cheio de bancos e mesas compridas, depois um amplo corredor, e em seguida outra cozinha, que estava vazia. Quando entraram em um corredor de teto alto, cheio de janelas em forma de arco no topo das paredes, ouviram passos na outra extremidade dele. Eles deram meia volta, mas já era tarde demais. Seis ou sete soldados barraram a passagem por onde eles tinham entrado, com espadas e lanças em punho.
— Onde vocês pensam que vão?
Sophie e Kevin viraram-se, e deram de cara com o guarda que haviam encontrado na rua próxima ao castelo. Ele estava acompanhado de três soldados, um deles com as mãos manchadas de sangue.
— Os levem para a rainha — ordenou aos outros. — Ela saberá o que fazer com eles.
Não havia para onde fugir, e nada que pudesse ser feito. Eles haviam fracassado.

●●●

Os guardas arrancaram todas as armas que eles traziam, e arrastaram-nos pelo castelo. A cada corredor e porta que passavam, a esperança diminuía no coração dos dois irmãos. Aquele labirinto de pedras estranhas havia os engolido, assim como engolira muitos antes deles. Fomos devorados, como nossa mãe...
Chegaram por fim a uma descomunal porta de carvalho e ferro em forma de arco. Sentinelas guardavam-na de ambos os lados, mas nem sequer lhes lançaram o mais sutil dos olhares, apenas abriram a porta. Um salão gigantesco desdobrou-se na frente deles. Incontáveis lareiras brotavam das paredes, mas nenhuma delas estava acesa. Toda a luz que iluminava o local era proveniente de altos vitrais que decoravam as paredes; fora isto, não havia mais nenhum adorno. Tudo ali era sombrio e triste, e por mais coloridos que fossem os vitrais, não eram capazes de diminuir a morbidez que brotava dos gestos e olhares dos ali presentes. Não eram muitos; nada além de um punhado de guardas, criados e gente do povo. Dois tronos rústicos estavam do outro lado do salão, vazios.
Os guardas arrastaram Kevin e Sophie para a outra extremidade do salão, para perto dos tronos. Todos os olhares estavam postos neles. As algemas que prendiam os pulsos de Kevin coçavam, mas ele tentou não demonstrar desconforto. Agora, mais do que nunca, ele não podia parecer fraco. Sua única preocupação era a irmã. Ela não era como ele. Sophie ainda preservava um pouco da sua inocência dos tempos de criança, mesmo que carregasse tantas mortes nas costas quanto ele. Para Kevin, ela não passava da sua irmãzinha, que ele precisava proteger a qualquer custo.
Uma trombeta soou solitária em algum lugar do salão, e um arauto gritou:
— Todos saúdem Sua Majestade, a Rainha Eliza, Senhora das Terras Azuis, de Tharnatia e do Mar de Outono.
Todos os presentes silenciaram seus poucos murmúrios e ajoelharam-se.  Um dos guardas que acompanhava Kevin deu-lhe uma cotovelada em suas costelas, e lhe obrigou a ajoelhar-se também. Ele conseguiu ver, pelo canto do olho, a irmã fazendo o mesmo. Passos ecoaram solitários pelo salão. Madeira sobre pedra. Vagarosos.
Toc, toc, toc...
Eles ficavam cada vez mais próximos. Os ecos que eles faziam lembraram a Kevin do palácio da bruxa, e um arrepio lhe subiu pela espinha. Uma sombra passou ao seu lado, mas ele nada enxergou além da barra de uma saia debruada de renda, e sapatos de salto alto decorados com pedrarias.
Toc, toc, toc...
O som parou.
— Levantem-se — disse a rainha.
O coração de Kevin começou a palpitar, mas ele não sabia por quê. Um guarda agarrou seu ombro e puxou-o para cima, bruscamente, então começou a falar:
— Estes aqui invadiram o castelo, Vossa Majestade. Eles assassinaram dois dos nossos guardas e...
Tudo se tornou silêncio.
No momento em que os olhares de Kevin e Sophie cruzaram-se com o da rainha, o mundo deixou de fazer sentido.
Aquele rosto... estava diferente... mas ainda era o mesmo. Sim! Ainda era o mesmo!
A palavra veio à boca de Kevin, e ali ficou, trancada. Sua garganta tornou-se um abismo, e seu coração, e sua alma...
Mãe, sussurrou uma voz do fundo abismo.
Ela está viva... ela é a rainha. Minha mãe é a rainha.
A mulher sentada no trono, mãe e rainha, encarou os dois prisioneiros com total apatia. Seu rosto era uma mascara vazia e inexpressiva. Belo penteado, joias, vestido luxuoso e postura soberana, mas faltava-lhe vida e verdade.

●●●


(continua)


2 comentários:

Anônimo disse...

Gostei dessa parte da estória. Quero ler mais!

Claudio Chamun disse...

Quando eu li "— Os levem para a rainha — ordenou aos outros" imaginei quem seria. Mas achei que só contaria na próxima parte.

Muito bom. Como sempre prendendo até a última letra.

www.cchamun.blogspot.com.br
Histórias, estórias e outras polêmicas