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sábado, 21 de dezembro de 2013

TESOUROS E TERRORES

Entre os povos antigos de diversas partes do mundo existem lendas que falam de tesouros. Alguns estão enterrados, outros amaldiçoados. Há aqueles que se perderam na história, esquecidos dentro de cavernas escuras, trancados em templos ancestrais, abandonados nas profundezas dos mares. Mas existe um tipo de tesouro especifico que, há séculos, vem despertando o temor e encanto da humanidade: os tesouros guardados por dragões. Estas histórias gelam corações covardes, acendem uma chama nos destemidos e inspiram os artistas e sonhadores. Como esquecer o poderoso Smaug? Ou o Eustáquio, que, em sua inconsequente ambição, acabou por tornar-se uma das feras que tanto temia?
            Uma destas lendas me chegou aos ouvidos. A verdade é que não escutei uma palavra que fosse sobre tesouros, apenas sobre o dragão. Enorme, sorrateiro, com dezenas de cabeças. Tentei tapar os ouvidos, fugir da mística e terrível história, mas não havia para onde correr. O destino me empurrou para cima dele, sem armadura, escudo ou espada.
            Olá rapaz, o que o traz aqui? ― a fera não falava, trovejava. Fui atraído por ela como somos atraídos pelas devastadoras tempestades.
            ― Eu não queria estar aqui. Eu não quero. Este não é o meu lugar.
            ― Não, de fato não é. Mas agora você ficará. A morte lhe chamou, mas você não a atendeu. Poderias ter desistido desta sádica aventura logo em seu início, mas preferiste seguir em frente.  Agora você permanecerá aqui para todo o sempre, comigo. Conosco.
Nem tive a chance de lutar. Meu coração já não existia mais, nem a mente ou a alma. Fui mutilado e dilacerado lenta e dolorosamente. Numa única dentada, a besta engoliu meu corpo, me fazendo mergulhar por sua goela abaixo, solitário. Minha cova era escura e úmida, e o único som que se podia ouvir era o bater dos corações da fera, como que para me lembrar de que eu ainda estava vivo.  Eu ainda estou vivo.
Você ainda está vivo. Eco. Você ainda está vivo.
Algumas outras lendas falam da figura da deusa protetora, da virgem mãe. Ela socorre os heróis nos momentos de desespero, quando tudo parece estar perdido e a esperança já está morta. Quando o fim é certo e a lâmina já se faz sentir no pescoço. Foi uma dessas deusas que eu ouvi, depois outra, e mais algumas – e alguns – , e o coro foi crescendo aos poucos, e o sussurro virou clamor; a calmaria, tempestade; o medo, fúria. E o ventre da fera rasgou-se. Fui puxado para fora dele por mãos caridosas. Nasci ali. Eu podia andar e falar e lutar. Ele tinha o mesmo rosto que eu, e a mesma voz. Mas agora ele estava morto, apodrecendo no interior da besta. Ele suportava as punições, terrores e ameaças. Mas não eu. Eu era outro agora.
Fui armado com algo que não sei descrever. Ora brilhava como ódio, ora como justiça. Minha mão levantou-se no ar, e outras se uniram a ela. Algumas conhecidas, outras estranhas. Uma a uma, as cabeças foram sendo decaptadas. Com surpresa, descobri que aquelas cabeças eram, assim como eu, aventureiros que acabaram por ser atraídos para dentro do covil do monstro. Para dentro de seu estômago. Lá, foram envenenados pouco a pouco, e, sem que se dessem conta, acabavam por fazer parte do monstro também. Mas agora estavam tragicamente livres. O sangue incandescente que lhes jorrava iluminava as pilhas de tesouros até pouco invisíveis.
O ar explodia em chamas. A misteriosa lâmina que me foi entregue dançava sobre a besta, ferindo-a cada vez mais fundo. Ela urrava. Ela desesperava-se. Ela temia.
Meu império.
As cabeças despencavam numa chuva de ouro e verdade.
Meu tesouro.
Ela havia tentado escondê-lo de mim. Esconder as joias raras que nele estavam. Esconder as belezas confinadas ali. Mas eu as achei, a duro custo, mas achei.
Eu.
A besta já não era mais nada. Seu veneno, outrora mortal, tornou-se cada vez menos letal, e seu discurso, cada vez menos atraente e assustador. Mortalmente ferida e desacreditada, ela fugiu para terras distantes, para perto de um novo grupo de aventureiros, que sonham e desejam. Mas aqueles que têm notícias dela contam-me que estes novos viajantes já começam a desconfiar de suas artimanhas, e armam-se para enfrentá-la.
O mal ainda reina. Mesmo fraca e assustada, a criatura escamosa continua a ferir. Seus seguidores, uma horda de sanguinários bárbaros, capturaram um nobre e antigo rei, e coroaram-no com uma coroa de espinhos negros. Um dia esta coroa vai ser posta sobre a cabeça da besta, então o império do terror chegará ao fim. Mas, até que este fatídico dia chegue, nossa luta será diária.
Precisei da ilusão. Precisei do medo. Precisei do fim.
Precisei das deusas e deuses que me fizeram renascer. Precisei da coragem das cabeças amaldiçoadas, que mesmo condenadas, me mostraram a verdade. Precisei descobrir que havia um tesouro na escuridão, encoberto pelo terror.
Precisei lutar. Ainda preciso lutar. Mas não pelo poder ou glória, como a besta e os seus, e sim pela liberdade e verdade. Por aqueles que amo, e que me amam. 




2 comentários:

Claudio Chamun disse...

Há quanto tempo eu não lia uma estória tua!
Bem vindo de volta meu amigo.

Abraços.

Anônimo disse...

Muito bacana.

Beijos e Feliz Natal!